“O que tentamos expandir é o grande direito de existir, mano. Não resistir. Resistir já é uma resposta, então a resistência já te coloca num lugar secundário, porque você precisa responder a uma estrutura. AmarElo é um grande manifesto pelos direitos de poder existir sem precisar responder à opressão” – Emicida.
Emicida chegará em 2021 subindo em um novo patamar da música brasileira. O rapper lança, em 8 de dezembro de 2020, o documentário AmarElo – É Tudo Para Ontem pela Netflix (produção de Evandro Fióti e direção de Fred Ouro Preto). À primeira vista, parece uma produção sobre o disco dele, lançado sob o mesmo nome em 2019, e o maravilhoso show de estreia no Theatro Municipal de São Paulo. Mas é muito além disso: é uma verdadeira aula de história digna de ficar para a história.
O que começa em microcosmos termina num abraço da cultura brasileira no geral. Emicida narra sua história pessoal, de batalhas de rima e crescer na Zona Norte de São Paulo ao show no Theatro para apresentar AmarElo. Mas conta bem além disso: vai um século para o passado, e mostra como, na semana de 22, os Oito Batutas eram tão contemporâneos quanto o rap é hoje.
O objetivo do filme, muito além de um docushow, é mostrar como a arte do Brasil é preta. É assim há mais de um século, mas custa para verem assim. AmarElo – É Tudo Pra Ontem retoma o direito da expressão e de conquista de lugares. Mostra a história que muitos não querem ver – tanto cultural quanto social. “O AmarElo é um grande manifesto pelos direitos de poder existir sem precisar responder à opressão. Ser maior do que ela,” disse Emicida em entrevista para Rolling Stone. Confira o papo:
Rolling Stone: E aí, Emicida, como você tá?
Emicida: Tô bem. Tô daora. Tô bacana. Tamo aí… Enquanto tiver milho, a gente faz pipoca.
RS: Quero começar elogiando o documentário. Achei sensacional. Terminei de assistir de madrugada e mandei mensagem para a equipe, de lição de casa, para redação inteira assistir. Está sensacional!
E: [Risos]. Obrigado. Que f***. Você terminou ele com qual sensação? A entrevista ficou ao contrário! Eu também tenho só 12 minutos para fazer a entrevista?
RS: [Risos] Acho que a primeira sensação foi um peso, né? Primeiro, na consciência, porque [sou branca] e minha história afeta muito diretamente a sua. Um peso por tudo que meus amigos passaram. Sou da Zona Norte [de São Paulo, onde Emicida cresceu] e conheço muita história parecida com a sua. A principal questão foi um peso… Mas também, esperança, de ver o tanto que vocês conseguiram nesses últimos anos. Isso é f***.
E: É… Acho que conseguimos contar uma história que pensa nos momentos de dureza, mas terminamos ele com muita beleza e uma provocação muito forte, saca? Do tipo ‘ok, sejamos melhores.’
RS: Sim, isso foi bem incisivo. Falando do final pro começo, então: você passa toda aquela mensagem de união, de como enquanto um estiver livre mas o outro não, ninguém está livre de verdade. Gostei muito disso, e queria saber como você acha que as outras lutas acompanham a sua luta?
E: Eu… Às vezes, uso a palavra luta. Não é tão estranho para mim. Mas luta não é a minha palavra preferida. Às vezes, consegue sintetizar bem um determinado momento. Mas, a verdade, é que à medida que amadureci compreendi como é maravilhoso se olhar no espelho e sentir que você é um ser um humano. Isso aconteceu por uma série de coisas: as pessoas que conheci, as pessoas que tenho ao meu redor, as pessoas que trabalhei, inclusive no documentário – foram pessoas fantásticas, por causa das viagens que fiz, do que li… Tudo isso é uma somatória que me coloca num lugar que me faz ter essa sensação.
Aí, talvez esse seja o coração de todas as atividades que são produzidas, no sentido de expandir o que significam direitos humanos pelo planeta. Tá ligado? O que essas pessoas querem? Os ativistas de direitos humanos querem que essas pessoas se olhem no espelho e se sintam humanas, entenderem que elas podem colaborar, produzir, viver, trabalhar… Não serão prejudicadas por nenhuma característica com a qual elas nasceram, saca? Ou a forma que se orientam em questões de gênero…
Então, “luta” é uma boa palavra, mas acho que o que fazemos, o que tentamos expandir, é o grande direito de existir, mano. Não resistir. Resistir já é uma resposta, então a resistência já te coloca num lugar secundário, porque você precisa responder a uma estrutura.
O que fazemos, tanto no projetoAmarElo como disco, e intensificamos no documentário, é mostrar que tivemos perguntas muito melhores ao longo da história desse país. Mas, nesse momento, estamos respondendo perguntas medíocres. Tá ligado? Precisamos nos reconectar com a qualidade das perguntas para que essa existência seja o centro, e não resistir mais. Entendeu?
Porque até na melhor das intenções, as pessoas querem fazer com que essas lutas sejam visibilizadas, e nessa boa intenção as pessoas tendem a colocar essas pessoas… Vamos falar aí de pessoas de pele escura, indígenas, mulheres, LGBTQ+… [Cara***, foi a primeira vez que acertei a sigla! Carai, to ficando profissional!] Mas mesmo que na boa intenção, às vezes, as pessoas colocam cada um desses grupos num lugar que parece que a existência deles é responder à opressão, quando na verdade é muito mais…
O AmarElo é um grande manifesto pelos direitos de poder existir sem precisar responder à opressão. Ser maior do que ela.
RS: No documentário, tem uma passagem com Zeca Pagodinho. Vocês estão conversando e você fala como nos últimos 10 anos houve um progresso, e definiu esse como “o período que não precisamos provar nada para ninguém.” Como você, como músico, sentiu essa mudança?
E: Quando cheguei aqui, rap não era compreendido como música em muitos lugares. A própria imprensa tinha uma maneira muito superficial e estereotipada de se referir ao gênero. Junto de outros artistas, conseguimos expandir o que isso significa. Isso também signifca que, junto com outros movimentos da sociedade, também expandimos o que significa ser uma pessoa preta, o que significa ser uma pessoa de quebrada. É muito amplo e não dá para colocar ninguém, nenhum grupo numa caixinha e dizer “essas pessoas são assim, se comportam desse jeito”, a experiência humana é muito vasta, sacou?
Digo isso porque a Laboratório Fantasma, nosso selo, é uma conjuntura de uma série de aspectos. Primeiro, temos uma grande busca artística. Temos a intenção de dar continuidade à grandiosidade da criação do Brasil, da arte brasileira. Por isso a gente provoca a ir cutucar lá a Semana de 22. Porque acreditamos que precisamos ser tão grandiosos quanto esse tipo de movimento. Por isso provocamos a ir pegar a origem do samba, orbitamos em torno disso desde sempre, e todo o Brasil que venceu estava em torno disso.
Só para exemplificar, e porque eles também estão no projeto do documentário, pegamos movimentos com essa grandiosidade e se provoca a tentar reproduzir o que seriam eles hoje. Pela forma como nos organizamos, pela construção que temos e apresentamos artisticamente, e pela relevância que temos – não só no ambiente da música, mas da cultura do país – chego à conclusão de que esse lugar de independência e maturidade me dá a liberdade de não precisar responder a questionamentos menores. Isso é que significa “não precisar provar nada a ninguém.”
Claro, tenho uma série de questões com as quais quero me relacionar para fazer com que as discussões do que é a criatividade aqui, neste país, avancem. Mas, a verdade, é que me sinto livre para não precisar responder questionamentos menores.
RS: Algo que veio demais na minha cabeça é: todas as pessoas do mundo que falam dessa causa precisam assistir esse documentário. Gostei muito que, por mais que seja um documentário brasileiro sobre música brasileira, ainda é um assunto completamente mundial. Este ano tivemos, no mundo ocidental, muitas discussões de questões raciais… Queria que você me dissesse qual é a mensagem principal que você acha que o documentário entrega para quem não é do Brasil?
E: Vivemos um momento em que o Brasil virou uma piada internacionalmente. Para quem se relaciona com pessoas do exterior diariamente, por causa de lançamentos – nossos discos são lançados na Inglaterra, Portugal… Trabalhamos com pessoas no Japão, nos EUA. Imagina que a imagem que o Brasil tem nesse momento é de pena. Oscilamos entre o Brasil ser um gigante digno de pena e uma piada.
Trabalhar com a Netflix é bacana nesse sentido porque explodimos para 190 países de uma vez. Então, temos a oportunidade de apresentar a grandiosidade do Brasil e, com o cartão de visitas que sempre foi o melhor cartão de visitas daqui – a cultura – para poder falar sobre a grandiosidade do que nasce aqui. Essa é minha empolgação, até porque é um tema pouquíssimo visitado na historiografia de documentários grandes deste país.
Temos muitos documentários maravilhosos sobre a cultura do Brasil, muitos a respeito da escravidão… Mas a escravidão não são as pessoas pretas. É uma interrupção da história das pessoas pretas. Acho que o documentário que produzimos coloca tudo em seu lugar. Mostra como produzimos uma arte que se provocou a pensar o país. Nem só pensar o país: produzí-lo. Tudo que amamos e acreditamos que deu certo é fruto dos pilares que são apresentados no documentário. Quero muito que as pessoas do exterior tenham essa sensação de “mano, tomara que o Brasil recupere sua grandiosidade logo.”