A recessão nos tirou festa e regalos e nos empobreceu emocional e espiritualmente
Por Flávia Oliveira, do O Globo
Os anos de euforia econômica (hoje saudosos) anabolizaram uma vocação ancestral dos brasileiros. Celebrações e presentes, contou a agência nova/sb, após percorrer quase três mil lares em 2015, figuraram entre os 20 itens que mais aumentaram participação no orçamento domiciliar na era da bonança. Quando a crise arrombou a porta, nove em dez consumidores decretaram o fim da festa e dos mimos. Literalmente. Limamos a celebração e o agrado. Sem eles, entristecemos.
Duas semanas atrás, na edição do Sarau Preto dedicada ao 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a escritora Conceição Evaristo chamou a atenção para a importância do canto, da dança, do tambor — da festa, portanto — nas tradições afro-brasileiras. Ela falava sobre seu novo livro, “Histórias de leves enganos e parecenças” (Editora Malê), e mencionou o papel que tanto a música quanto os movimentos do corpo têm na conexão com o divino.
Os negros escravizados cantavam e dançavam, lembrou a escritora, para se aproximar das divindades e restabelecer a energia positiva sequestrada pela rotina de saudade da África, trabalho forçado e castigos físicos. Sem o ritual, sucumbiriam aos maus-tratos e seriam tomados por tristeza, apatia, depressão. Eram a dança ou a morte.
Incapazes de identificar o sentido vital do ato, os colonizadores passaram a crer que os negros não tinham sentimentos. “Depois de apanharem, os negros cantavam e dançavam. Eles não podiam ser humanos. Era esse o pensamento”, arrematou a escritora negra, mestre em Literatura Brasileira.
Das tradições católicas vêm a celebração do Natal e o hábito de presentear. O menino Jesus, recém-nascido, foi reverenciado pelos Três Reis Magos com ouro, incenso e mirra. Outra explicação estaria em São Nicolau, arcebispo de Mira (Turquia), que ajudava anonimamente cidadãos em dificuldades financeiras. Ele lançava sacos de moedas de ouro pelas chaminés das casas. Daí para a lenda de Papai Noel foi um pulo.
O candomblé encara o Natal como rito cultural, não religioso. Tempos atrás, a esta colunista, Graziela Domini, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais tradicionais de Salvador (BA), explicou que a troca de presentes reforça laços de afeto; por isso, é bem-vinda. “O culto aos orixás se dá também pelas oferendas. Ao presentear alguém, de alguma forma, estamos homenageando não apenas o indivíduo, mas a partícula divina que há nele. Essa atmosfera dialoga com o candomblé”, completou.
O tempo passou, mas em algum lugar da alma de todos os brasileiros há de pulsar o desejo de celebração e troca de afeto, que anima o coração, aumenta a resiliência, faz a vida seguir adiante. A faísca herdada dos africanos e dos cristãos vive em nós; vez por outra, se não incendeia o ambiente, ao menos, solta fumaça.
Acontece que, no meio do caminho, nos afastamos dos sentidos divino e cordial das celebrações. Mercantilizamos as festas. Calendários religiosos e comerciais se aproximaram na intenção de movimentar a economia via consumo de alimentos, bebidas, roupas, brinquedos, joias, eletrônicos e o que mais for possível transformar em badalação e regalos.
Quando a maré estava favorável — e o Produto Interno Bruto (PIB) crescia, a renda disparava, o bem-estar se materializava —, os brasileiros celebravam e presenteavam, inundando lares e almas com a boa energia da conexão (ainda que inconsciente) com o divino e da atitude fraterna com familiares e amigos. Mas monetizamos o cotidiano e, na hora da crise, viramos as costas ao que seria supérfluo para o bolso.
Na pesquisa da nova/sb, gastos com presentes e festas foram os dois mais citados num rol de 26 itens que sofreram cortes no orçamento familiar. Perderam para educação, habitação, assistência médica, remédios, produtos de higiene e beleza, TV por assinatura, internet, carro, aparelhos eletrônicos, seguro, roupas, bebida alcoólica. Tornaram-se incompatíveis com os tempos de austeridade, como se celebrar fosse sinônimo de fartura e presentear, de dinheiro.
A recessão que nos tirou festa e regalos, se salvou uns trocados, nos empobreceu emocional e espiritualmente. A mercantilização civilizatória, a racionalidade econômica romperam elos ancestrais e avançaram sobre ritos culturais que nos forjaram. Perdemos vitalidade. Pela riqueza da alma, por respeito às tradições mais enraizadas, festejemos. Não tem preço.