Geni Guimarães e Conceição Evaristo: um cuidado ao ler em público

Certos livros não devem ser lidos em público, sob pena de passarmos por pessoas desequilibradas.  Sob pena de virem nos dar os pêsames pela vida que, terna, imita a  arte e nos machuca.

por Maria Nilda de Carvalho Mota para o Portal Geledés

Fotos: Geni Guimares – UFMG – Conceição Evaristo – Facebook (arquivo pessoal)

Leite do peito, de Geni Guimarães, e Insubmissas lágrimas de mulheres,  de Conceição Evaristo, são exemplos plenos dessa capacidade da arte de mimetizar a vida e fazê-la doer com tanta força que desconcerta até as mais duras pedras psicopáticas. Eu acredito…

Certa vez estávamos Mariana* e eu (duas Herdeiras de Nzinga) num trabalho frenético,  lendo histórias rudes, sem sal, sem mel, sem suspiros…  daí eu disse: tó, Mari… pra descansar da solidão.  E lhe entreguei Leite do peito.

Ela começou a ler, sozinha no seu canto de trabalho.

Cinco minutos.

Levantou. Saiu. Voltou meia hora depois.

Tinha ido chorar no banheiro.

Hoje, depois de anos esperando pra ler Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo – pois ela havia me prometido um exemplar,  em troca do meu  Gado cortado em milprantos -, na sala de espera de um pronto socorro,  saquei da bolsa o dito cujo.

Eu estava lá de acompanhante da minha mãe. Ela ia fazer cirurgia de catarata. Aos quase 72 anos já não via tão bem as coisas.

Então,  sentada na cadeira de plástico, ao lado da mulher que  mais me contou histórias na vida, fui conhecer algumas outras “Insubmissas”.

Comecei por Aramides, mas um incômodo no tórax rapidinho me fez levantar, baixar os óculos escuros e abrir o celular procurando um unguento qualquer.

Mas a negritude da sala de triste espera em pouco tempo me fizeram querer voltar à ficção.  Então conheci Soledad e sua determinação incrível, sua fúria, sua autoridade sobre si, sobre a vida e sobre todes que lhe quiseram tolher a existência.

Soledad era golpe lírico demais pra mim. Chorei em público,  com medo de me perguntarem se a minha mãe,  tadinha, tinha  morrido durante a cirurgia.

Óculos escuros.  Livro guardado. Pessoas me inquirindo discretamente.

Voltei então pra conhecer Shirley Paixão.  Outra vez, no meio da narrativa,  tive que fechar o livro.

Era um conto caro demais para ser lido em público.

Geni Guimarães  também  tem esse poder. O poder de tocar tão fundo em nossos sonhos, nossos medos, nossa ancestral agonia racializada, nossas dores de classe e texturas de meninas, que traz perigo lê-la na rua.

Como Insubmissas lágrimas de mulheres, Leite do peito derrama sobre nós tanta angústia,  tanta ternura, esperanças, expectativas de vida e mortes corriqueiras,  que nos tornamos um pouco, ao lê-los, parte desses seios fartos que na literatura faz jorrar a vida .  Ao lê-las cresce em nós a fúria terna das lutas carregadas por nós  mulheres negras – as pálidas e as retintas. Estas, sobretudo.

Cresce em nós a força convenientemente oculta sob os véus da macheza medrosa, vai formando um engulho, transborda em lágrimas e,  por fim, nos obriga à multiplicação dos mundos que a nossa literatura negra e feminina tão magicamente prolifera.

Definitivamente, esses não são  livros para serem lidos em público.

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