Não consigo ver as imagens do Haiti na TV. Não é apenas dor e dó. É o dia seguinte que bate fundo, o futuro de um país, que para muitos já era sem futuro, cujo horizonte está invisível ao perder no terremoto parte substancial de suas cabeças pensantes mais firmes e patriotas.
Por Fátima Oliveira
Até conhecer feministas haitianas, o país era uma incógnita entalada na garganta. A primeira vez que ouvi sobre os dissabores do Haiti foi de um professor de cursinho, nos idos de 1972, José Maria do Amaral; discorrendo sobre excrescências da humanidade, citou Nero e o Papa Doc (Papai Doutor: François Duvalier, 1907-1971), médico negro e ditador do Haiti (1957-1971), que vivia cercado de “Tontons Macoutes” (bichos-papões), uma guarda pessoal sanguinária; se autonomeou presidente vitalício, com direito familiar de transmissão do poder (1964), e se comprazia diante de cabeças decepadas dos inimigos!
Pontuou ser incompreensível que um povo altaneiro, que fez uma revolução antiescravista numa ilha do Caribe – ilha Hispaniola, onde ficam Haiti e República Dominicana – e aboliu a escravidão enfrentando o exército de Napoleão (1794), tornando-se um fantasma para os senhores de escravos do mundo, ao instaurar uma república camponesa negra (1804), que se submetia ao Papa Doc! Enojavam as diatribes de Baby Doc (Jean-Claude Duvalier), ditador hereditário (1971-85), e suas regalias num palácio em Paris, onde, segundo diziam, até as torneiras eram de ouro!
O mundo inteiro sabia que a riqueza dos Duvalier era roubada da boca do povo, o que torna eticamente inexplicável o apoio dos países ricos, sobretudo do vizinho Estados Unidos. Em “Limites éticos”, narro meu encontro com uma feminista haitiana, que jamais compactuou com governos trogloditas, dia em que perdi a inocência com as denominadas Tropas de Paz, na reunião da Mesa Diretora Ampliada do Comitê Especial de População e Desenvolvimento (Cairo +10), em Porto Rico, em julho de 2004 (O TEMPO, 25 de agosto de 2004).
Ao nos abraçarmos, ela murmurou pesarosa: “O seu país está ocupando o meu país”. Um vexame! Para ela, eu era a materialização do colonizador. Entendi o que minha amiga quis dizer vendo o delírio de haitianos atrás dos urutus (precisavam ser urutus?) com jogadores da seleção brasileira acenando como deuses no Olimpo. Era degradante. Força de Paz da ONU (Brasil no Haiti) ou força de ocupação truculenta (EUA no Iraque) despertam o mesmo sentimento de perda de soberania: há tanques estrangeiros zanzando em minha pátria.
Minha interlocutora, Miriam Merlet, teve a vida ceifada pelo terremoto. A Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe declarou, em “Un Dolor Compartido, pero Siempre un Dolor – Solidaridad con Miriam Merlet y Todas las Compañeras Muertas en Haiti”: “A paixão de Miriam foi a defesa dos direitos humanos das mulheres e foi ali em sua pátria, onde chegou a ser ministra da Mulher – que coerência com sua trajetória histórica! Quem melhor que ela poderia exercer um cargo como esse? Quem melhor que ela poderia fazer valer a participação das mulheres em igualdade de condições com os homens, e fazê-lo desde o mesmo centro de poder? É por isso que estamos doídas, perplexas e sem voz. É demasiado difícil encontrar uma frase, sequer uma palavra, que alcance expressar a profundidade do sentimento que nos embarga”.
Um país que perde mulheres como Miriam Merlet (53), Magalie Marcelin (50) e Anne Marie Coriolan (53) fica na orfandade e adia o futuro de dignidade que o mundo deve ao Haiti.
Fonte: O Tempo