A organização da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) confirmou o que todos já esperavam desde outubro, quando a jornalista Josélia Aguiar foi anunciada como a curadora da edição de 2017 do evento: Lima Barreto será mesmo seu próximo homenageado.
Por Rodrigo Casarin, da UOL
Em 2013, junto da tradutora Denise Bottmann, Josélia (veja aqui mais da entrevista que fiz com ela) encabeçou uma campanha para que o autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Numa e Ninfa”, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga” e do famoso conto “O Homem que Sabia Javanês”, dentre outros, fosse o homenageado da edição de 2014 da Festa. No entanto, as mais de mil assinaturas que colheram em um abaixo-assinado não foram suficientes para comover a organização, que optou pelo nome de Millôr Fernandes.
Agora, enfim, chegou a vez de Lima Barreto. “É um autor que abre muitas possibilidades. É preciso reconhecer, em primeiro lugar, sua inventividade literária. Depois, em torno de sua vida e obra podemos discutir grandes temas, como o poder, o preconceito de cor, uma certa visão de Brasil, a imprensa, as trajetórias que estão à margem, as intersecções entre literatura e política, literatura e loucura, a cidade e seu habitante. Na história e crítica literária, Lima Barreto pode ser um divisor muito interessante, ainda mais se pensar que há toda uma linhagem que parece seguir sua trilha, como o Jorge Amado, e, inegavelmente, o João Antônio”, diz Josélia.
Segundo a curadora, o nome de Barreto também ajuda a colocar em pauta questões relacionadas ao Brasil e ao mundo de hoje. “Acho que é imensa [a importância da obra dele para o momento que vivemos]! Sobretudo diante do noticiário recente, quando a intolerância vai ocupando um espaço inimaginável para o nosso tempo. Retrocedemos, talvez. Existe outro ângulo para se ver as coisas. Nas redes sociais um ativismo muito bem-vindo para que haja mais visibilidade para autores negros e autoras mulheres. A diversidade é um foco grande na programação da Flip 2017”.
História com Jorge Amado
Desde que foi anunciada como substituta de Paulo Werneck, Josélia jamais negou que Lima Barreto era mesmo seu nome favorito. Ela passou a conhecer melhor a obra e a trajetória do escritor enquanto escrevia a biografia de Jorge Amado, grande fã de Barreto. Ao investigar as razões de toda aquela admiração, encontrou a história de um carioca negro, pobre e rebelde, que sofria muito com o preconceito e que conseguiu construir uma grande trabalho literário, marcado pelo pela escrita considerada simples para os padrões da época, por transpor para ficções muito dos figurões da sociedade em que vivia e por colocar em evidência tipos excluídos socialmente. Assumia que sua escrita visava incomodar e atacar os mais poderosos e pode ser encarado como um autor que fez “literatura marginal” muito antes do próprio termo existir.
“Quando comecei a pesquisar para a biografia do Jorge Amado, me dei conta do quanto ele admirava Lima Barreto na juventude. Amado fizera parte da Academia dos Rebeldes, uma geração de poetas, escritores e etnógrafos baianos que se diziam ‘modernos sem ser modernistas’. Essa Academia dos Rebeldes tinha como mentor um poeta satírico chamado Pinheiro Viegas, que vivera um tempo no Rio na turma do Lima Barreto. Então tive necessidade de ler mais Lima Barreto, que eu só conhecia da época de escola, como quase todo mundo. Descobri um autor muito inventivo para o seu tempo, com uma trajetória de vida bastante acidentada, visto sempre numa aba de ‘literatura social’ que parecia apequená-lo. Para além da biografia que desperta tanta curiosidade, é preciso reconhecer seu valor literário”, recorda.
Josélia também conta que, ao ser convidada para a curadoria, houve uma consonância com a organização para a escolha do autor homenageado. “A Flip gosta de surpreender. Desta vez, houve um entendimento de que a surpresa seria justamente confirmar o nome do Lima Barreto. Desde as primeiras conversas que tive com Mauro Munhoz [diretor da Casa Azul, que organiza o evento], mesmo antes de ser anunciada curadora, falei que era o autor que precisava imediatamente estar em evidência. A Flip sempre tem um conjunto de nomes possíveis para homenagear, então a boa coincidência é que chegou a hora do Lima Barreto justamente quando empresto o meu entusiasmo à programação”.
Sobre Lima Barreto
Neto de escravos e filho de um tipógrafo, Lima Barreto nasceu em 1881 e só teve uma boa formação porque a família era próxima de um ministro do Império. Atuando como jornalista, publicou textos de diversos gêneros em jornais e revistas. Em uma delas, a “Floreal”, da qual foi fundador e diretor, lançou os primeiros capítulos de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, história na qual trata do racismo e da exclusão social e que viraria livro em 1909. Dois anos depois, no “Jornal do Commercio”, publicou “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, seu romance mais famoso. Nele, um major extremamente nacionalista luta, dentre outras coisas, para que o tupi se torne a língua oficial do país. A versão em livro, contudo, só saiu em 1915, com o próprio autor bancando a edição.
Antes disso, por ser alcoólatra e depressivo, já tinha passado uma temporada internado em um hospício, para onde voltaria em algumas outras ocasiões ao longo da vida, o que lhe serviria de base para escrever diários e o romance “Cemitério dos Vivos”, que jamais chegou a concluir. Desprezado pelos seus colegas de escrita da época, tentou mais de uma vez entrar para a Academia Brasileira de Letras, mas sempre foi recusado. Muito de sua obra só chegou ao público depois de sua morte, em 1922, aos 41 anos. Pesquisadores como Francisco de Assis Barbosa que a partir da década de 40 começaram a resgatar muito do que Lima Barreto tinha escrito e perigava se perder para sempre, como o livro “Clara dos Anjos”, publicado em 1948.