‘O Caso do Homem Errado’ é apaixonante acréscimo à discussão sobre racismo no Brasil

Filme extrapola o tema com um debate sobre ética e justiça no combate à criminalidade: existe homem certo para matar?

por Luiz Carlos Merten no O Estado de S. Paulo

S11 ARQUIVO 17/08/2018 CADERNO2 CADERNO 2/ CINEMA cena do filme O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes CRÉDITO: Maurício Borges de Medeiros

No Festival de Gramado, Leonardo Domingues apresenta nesta segunda-feira, 20, em concurso, seu longa sobre Wilson Simonal, que traz embutida a questão do racismo no Brasil. No dia 29, começa no Rio o Encontro de Cinema Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe, que busca fortificar a identidade negra no País e estabelecer pontes para diálogos internacionais. Em Minas, terminou no domingo, 19, o FestCurtaBH, que este ano privilegiou a questão racial e teve toda uma seção destinada a discutir o assunto – Cinema Negro no Brasil, Uma História Fragmentada. Com toda essa discussão, em diferentes foros, é bom lembrar que segue em horários especiais, em São Paulo, um belo filme – sem distribuição formal – que dá importante contribuição ao tema, O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes.

Durante o Festival de Cinema Latino-Americano, Camila e sua produtora, Mariani Ferreira, estiveram na cidade para encontros com o público. Distribuíram ‘santinhos’ do filme, explicando que o documentário de longa metragem aborda a questão do genocídio da juventude negra. Impressa, no papel, estava a frase “Vidas negras importam.” Camila e Mariani contaram que demoraram oito anos para fazer o filme. Receberam muitas negativas – um pouco por serem jovens, negras, presumivelmente inexperientes, mas sobretudo pelo tema. Foram apoiadas pela comunidade negra do Rio Grande do Sul, e esse apoio foi inestimável.

O Caso do Homem Errado baseia-se num episódio célebre no Rio Grande. Nos anos 1980, um operário negro, Júlio César de Melo Pinto, foi executado em Porto Alegre por soldados da Brigada Militar. O caso tornou-se exemplar do tratamento dado a jovens negros, que se tornam suspeitos pela simples cor da pele. Houve um assalto com reféns no centro da capital gaúcha. Houve troca de tiros entre a polícia e os assaltantes. A movimentação atraiu a atenção de populares. Júlio César era um deles. Mas, por ser epilético, sofreu um ataque e caiu ao solo. Em vez de ser socorrido, alguém da multidão gritou – “É um deles.” Mesmo inconsciente, ele foi jogado dentro do carro da polícia – um fusca. Apanhou, e muito.

Tudo isso foi testemunhado – e documentado – por um repórter fotográfico do jornal Zero Hora. Ronaldo Bernardi (seu nome) iniciou uma louca perseguição ao carro da polícia. Quando chegaram ao hospital, Júlio César já estava morto – a tiros. Havia sido executado no caminho. O jornal iniciou uma campanha, o caso foi a julgamento. Passados mais de 30 anos, o filme das jovens diretoras levanta uma polêmica que extrapola a questão racial. O repúdio da opinião pública foi motivado pela reação da mídia ao fato de ele ser um homem errado – honesto, trabalhador. Mas, e se fosse o homem certo – assaltante –, a polícia teria direito de executá-lo?

É uma questão que provoca reações apaixonadas. De um lado, os defensores dos direitos humanos e, de outro, a turma dos armamentos, que defende que bandido bom é bandido morto. Essa discussão política foi privilegiada nos debates em São Paulo, em detrimento da estética. Pois, mesmo sendo uma obra militante, O Caso do Homem Errado é cinema, e bom. As opções narrativas da diretora, suas escolhas de montagem e angulação nas entrevistas, são muito interessantes. E tem a emoção. O genocídio tem de parar.

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