O mercado do “antirracismo” nas redes sociais e os fregueses brancos

As redes sociais são um grande Mercado, onde se encontra de tudo. Tudo mesmo: autoajuda, moda, tendências, política, culinária, deus ou deuses, ódio, pensamento positivo, esoterismos e, não podia faltar, os antirracismos à moda. Ao mesmo tempo que oferecem uma gama enorme de produtos simbólicos e materiais, estas redes transmitem a sensação de horizontalidade nas relações sociais o que, no dia a dia, não é possível. Todos os sujeitos parecem ter voz igual, algo a ensinar ou um produto para vender. Lembrei-me de uma conversa com um amigo italiano, cientista político, que disse ter feito um comentário no seu Facebook sobre a guerra na Ucrânia e o seu ex-professor, um aclamado intelectual siciliano, respondeu-lhe com uma análise bem acurada. Logo em seguida ele foi rebatido por um conhecido do meu amigo que, segundo ele, leva a vida de bar em bar e ninguém na sua cidade o levava à sério. 

Um tempo atrás, um homem branco começou a questionar a minha Negritude nas redes sociais com diversas mensagens nas minhas publicações. Primeiro, ele pediu-me um teste de DNA que comprovasse as minhas origens para, em seguida, questionar o porquê de eu não me apresentar como “branca escura”. Nunca tinha ouvido o termo antes e achei interessante. Brancos, durante toda a minha vida, fizeram questão de demarcar a minha alteridade, mas aquele homem apareceu, do nada, querendo que eu me identifique com ele e os seus. Porque será? A resposta é simples: uma vez que estamos nos organizando em torno de uma identidade, a branquitude acredita perder força e, é melhor cooptar alguns que os perder para a Negritude. Mas, o termo tornou-se recorrente entre alguns fregueses brancos que passam pela minha “barraca” (Instagram), o que me fez interessar pela origem dele e sobre quem tinha vendido o produto.

Mais tarde entendi de onde ele tinha tirado o tal “branca escura”. Era um novo produto de uma influencer negra que, estranhamente, só ataca pessoas da sua raça, se diz fugir do vitimismo e tem centenas de seguidores brancos. O Instagram tornou-se terreno fértil para qualquer negro militar, pois o tema da raça está em alta. Temos, desde aqueles que se afirmam através de uma estética que pretende despolitizada: Vamos te ensinar a elevar a autoestima não falando de racismo, de violência contra negros, de branquitude, etc. Afinal, se você falar, o problema é seu, que não está bem resolvido, aos empreendedores, comediantes, estudiosos, acadêmicos, etc. O público branco vai em delírio com a diversidade e começa a comparar discursos, escolhendo, obviamente, aquele mais dócil, que soa como “canção de ninar”, como diz Conceição Evaristo, aos ouvidos, além de agradável aos olhos.

Há também negros e negras ensinando a ganhar dinheiro num país onde o desemprego e a precariedade afetam a população negra, sobretudo, a feminina, sem questionarem as estruturas econômicas e a pirâmide social que esmaga a base. Novamente, brancos adoram, pois, confirmam a crença numa culpa individual, já que é possível enriquecer, bastando um esforço a mais e o silêncio em torno das dores e da exploração da mão de obra preta. Brancos que vão atrás desse tipo de conteúdo, geralmente, não aceitam pesquisas, estatísticas ou reflexões mais aprofundadas. O genocídio da juventude negra é coisa da cabeça de negros extremistas, a pobreza e a desigualdade social são devido à falta do que fazer, afinal, trabalhar 14 horas por dia, combate qualquer miséria. Mulheres negras e mortalidade infantil são questões de escolha por um bom hospital e, um bom hospital, não está ligado às políticas públicas, mas ao esforço pessoal. Nada tem ligação com as estruturas, com as instituições, com o coletivo. Somos todes pequenas partículas independentes que precisam pensar positivo para atrair o mundo que deseja. 

Outra influencer negra até chegou a dizer, em um dos seus vídeos, que ela não gosta do termo “racismo estrutural”, levando brancos à loucura. Reparemos, é o gosto dela que se coloca enquanto leitura legítima e não a realidade compartilhada. Existe uma série de pesquisas e de pessoas sérias que teorizaram sobre o tema e que passaram a vida engajados contra o racismo na sociedade. Mas a tal influencer se sente no direito de fazer o seu “gosto” passar por uma teoria ou leitura válida no mesmo nível de Silvio Almeida, por exemplo. No mesmo vídeo ela diz que pessoas brancas também sofrem racismo e que, ela mesma, viu um caso num reality show em que uma mulher negra hostilizava uma garota branca pelo simples fato desta última ser muito linda. Bem, ela parece ignorar o que seja racismo e, qualquer hostilidade ao branco, pode ser lida como tal. 

O consumidor branco, que não é bobo, viaja pelos mercadinhos com a sua sacola e decide onde parar, olhar o produto e comprar. Geralmente, aquele que reforça as suas crenças e práticas são os mais visitados e consumidos. Eles oferecem discursos que não desestabilizam, que não confrontam, como toda educação libertadora. Não provocam nenhum incômodo e não faz pensar. Aí o freguês, após colocar na sacola, compartilha com os amigos e ainda dá uma volta nas outras “barraquinhas”, geralmente com algo mais substancial, e arrota orgulho por fazer o melhor negócio. Brancos, na sua maioria, gostam de algo mastigado e, o que eles não conseguem degustar, pois o gosto parece demasiadamente amargo, acusam de extremismo, ódio, radicalismo e violência.  

Uma grande amiga negra, doutora em psicologia, recebeu um vídeo de uma influencer, record em vendas, enviado por uma mulher branca dizendo que aquele sim, era um “produto” digno de consumo, pois, o que a minha amiga oferecia, era raivoso demais. Vi o vídeo em questão e pensei: “Feito à medida da branquitude!” Trata-se de um conteúdo sem nenhuma correspondência com a realidade, sem denúncia de racismo, sem apontar responsáveis pela violência contra negros, sem história, sem fatos e reflexões. Um achismo descarado tentando lacrar com o consumidor branco, acusando negros que lutam de serem pesados demais com os brancos, afinal, coitadinhos, não podemos ser assim tão duros, pois, “nem todo branco”. Nestes mercados “antirracistas” até mesmo a palavra “branco” desaparece, pois, soa violento racializar o grupo opressor. 

A autora do livro “A Fragilidade Branca”, Robin Di Angelo, diz numa entrevista à CNN que a fragilidade existe, justamente, pelo fato de brancos nunca serem confrontados, raramente desafiados na sua visão de mundo. 

(…) quando me desafiam e dizem que são privilégios, reajo. Fico ofendida. Não estamos acostumados a ser vistos como brancos e, de certa forma, nos sentimos expostos – o que nos torna frágeis nessas conversas.

O problema dessa diversidade no mercado, onde uns agradam e fortalecem a branquitude e outros a combatem é que brancos tendem a nos colocar para competir uns com os outros, enquanto saem de fininho do centro do problema. Grande parte está buscando um “antirracismo” light, digerível, que deixa tudo no mesmo lugar e, o fato de encontrar, os fortalecem ainda mais. Não, não estamos competindo com as “barracas” dos produtos antirracistas liberais nas redes sociais, como acreditou a mulher ao “cutucar” a minha amiga. O que muitos oferecem é entretenimento para brancos, não luta. Quando os consumidores brancos, geralmente frágeis, passam pela minha rede, à procura do produto que lhes agradam, chantageando-me logo em seguida quando não encontram, com frases do tipo: “Eu pensava que…” ou “Eu até gostava de você, mas…”, “que pena que você é assim tão raivosa…”  costumo dizer que não tenho o produto, mas logo ali adiante, é bem possível que encontrem, para a felicidade dos brancos, o enriquecimento de poucos negros e a morte diária de milhares de nós.


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia. 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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