“Tenho sempre um frisson quando eu encontro as atrizes e os atores do Bando de Teatro Olodum, porque são de verdade meus primeiros ídolos. Quando eu vi o Ó Paí, Ó pela primeira vez como público, eu achei aquilo muito poderoso”, conta Lázaro Ramos com um largo sorriso no rosto, que junto a boa parte do elenco original de Ó, Paí Ó, após 15 anos, retorna às telonas dos cinemas brasileiros com a sequência do filme, que entrou em cartaz na última quinta-feira, 23.11.
Ó, Paí Ó 2, agora com direção assinada por Viviane Ferreira, apresenta o Pelourinho, em Salvador, com mais vigor, contagiante e o gingado de sempre, mas não pense que ficaram de fora assuntos que sempre atravessaram a população negra como a cultura, o racismo, saúde mental, tecnologia e ancestralidade. Ó, Paí Ó carrega essa preocupação no texto e na teatralidade desde quando a peça foi criada, em 1992 e se desmembrou ao longo dos anos em filme e série de TV, atingindo um público muito maior do que o esperado e abordando temas pertinentes a realidade da população negra brasileira.
““É uma oportunidade que temos em pensar o que é que aconteceu no Brasil nos últimos 15 anos relacionado à moradia, ao racismo, à identidade, à criação de filhos, à formação familiar, à afetividade e à presença do negro na sociedade.” E tudo isso, estou só lembrando da carinha dos personagens, porque são temas que eu acho que cada um deles representa”, pontua Lázaro, que ressurge novamente no papel de Roque, cantor baiano que busca pela sua ascensão na indústria musical, sem deixar sua essência e origem de lado.
Joana (Luciana Souza), Reginaldo (Érico Brás), Maria (Valdinéia Soriano), Matias, (Jorge Washington), Neuzão, (Tânia Tôko), Mãe Raimunda, (Cássia Valle), Psilene (Dira Paes) são alguns dos nomes que imortalizaram seus personagens, nos diversos formatos de Ó, Paí, Ó e hoje retornam ao novo projeto, que também apresenta Clara Buarque, que dá vida a personagem Florzinha. “Cada personagem já tem uma vida tão própria que a gente sabe o que falar. Eu, que não estou morando na Bahia, de repente volto aos trejeitos de Roque, e às falas e raciocínio dessa parte de Salvador”, comenta Lázaro. “Elas vêm, o improviso vêm com muita naturalidade e sem falar da parte política do filme, que me contempla muito. É muito bom fazer as cenas com mais intensidade que o personagem tem. Agora com um pouco mais de emoção. Enfim, eu sou muito feliz por fazer parte desse grupo de teatro.”
Num bate-papo descontraído, Lázaro Ramos fala sobre os motivos que trouxeram Ó, Paí, Ó 2 de volta às telas, compara algumas nuances dos temas entre os 15 anos da primeira versão e esta segunda, comenta sobre a receptividade do público na pré-estreia e os ataques e boicote que vem sofrendo por parte de pessoas públicas e civis, ligadas à extrema-direita.
Vogue: O que levou a Ó Paí, Ó 2 estrear nas telonas 15 anos depois da primeira versão?
Lázaro Ramos: Depois que a série acabou, o Bando de Teatro Olodum até voltou com a peça de teatro, mas entendendo que tinha se concluído um ciclo de histórias desses personagens. Porém, alguns anos atrás, o filme voltou com muita força nas redes sociais e na internet. As pessoas começaram a compartilhar frases, memes, figurinhas. Muita gente refazendo cenas e postando no YouTube. Nisso, o filme renasceu. Entendemos o que cada um desses personagens representava e que ainda, é uma discussão válida a se ter no Brasil e poderíamos dar um salto nessa reflexão, como um exercício de pensar se eles existissem de verdade, 15 anos depois: como é que eles estariam, o que eles aprenderam e o que ainda lhes faltava?
E o filme se realiza muito nisso. Pretensiosamente falando, mas não acho que há pretensão não, o que esse filme está trazendo é uma oportunidade que a gente tem de pensar o que é que aconteceu no Brasil nos últimos 15 anos relacionado à moradia, à racismo, à presença do negro na sociedade, a identidade, a criação de filhos, a formação familiar, a afetividade. E tudo isso estou só lembrando da carinha dos personagens porque são temas que eu acho que cada um deles representa.
Como foi reencontrar esse elenco no set novamente?
Quando eu cheguei em Salvador para filmar, eu ficava parecendo aquele adolescente de 15 anos, feliz por estar perto deles, feliz por ter um personagem que ia poder contracenar com eles, feliz por poder voltar a contar essa história, mesmo com todas as dificuldades. Foi um filme difícil de fazer. Foram só três semanas e meia de filmagem. É muito corrido e muito pouco tempo. Mas tem uma mágica que acontece, que é quando a gente se encontra em cena, elas de repente explodem
O primeiro filme que fala sobre metaverso e tecnologia do Brasil é Ó Paí, Ó. Estamos antenados com o nosso tempo. O filme está conversando com as nossas pautas e colocando essa reflexão nas mãos de crianças negras. A gente não pode esquecer isso, jovens negros que também tem direito a ter esse acesso a essa tecnologia, essa reflexão e que já estão usando. O filme tem um conceito que eu gosto muito, o meu conceito que é: a cultura negra sempre esteve no metaverso, só não tinha esse nome, o Metaverso já estava na cultura negra. Se você for mapear, aí a gente consegue paralelo para tudo. Então, eu acho isso muito legal, porque é lidar com a ancestralidade e com o futuro no mesmo grupo.
E falar dessas pautas como a saúde mental é um tema em que a gente não se dava o direito de falar. Inclusive, no primeiro filme a gente faz piada com a pessoa que está triste. No primeiro filme, a personagem trans é somente objeto de desejo. Agora ela é amada, ela é desejada. Falam poesias para ela, o amor para ela é um outro lugar. A Maria, que era essa mulher que era absolutamente abusada no primeiro filme, mesmo que no tom de comédia e que tem uma uma ligação com a realidade, mas a Maria está num outro lugar agora, do que as mulheres negras querem para elas, dessas mulheres que ficaram ali dentro de casa criando filho o tempo todo e o marido em casa saracoteando por aí. E agora ela toma o seu destino para si. O senso de aquilombamento que se fala nesse filme, a coletividade. A solução do filme vem do aquilombamento, simples assim. Não vem um herói, salvador de longe que vai resolver os seus problemas. A comunidade se agrupa e por isso vence, por isso se fortalece.
A pré-estreia aconteceu aqui em São Paulo nesta semana. Quais foram as suas primeiras percepções da reação do público?
Estreamos aqui em São Paulo e foi lindo, porque a sessão era para 1.000 pessoas e chegaram 1400. Tivemos que abrir um monte de sessão a mais. A reação do público, mesmo com algumas expressões baianas, o público embarcou porque tem algumas coisas que são ditas que a gente fala muito comumente da Bahia, sei lá. Tem uma frase que eu dei risada sozinho no cinema que é assim: “Ah, lembrou do preço da gasolina, né, Reginaldo?” É porque o marido, no primeiro filme, sempre se aproveitava dela pedindo dinheiro para pagar a gasolina. Eu que lembrei do primeiro filme, eu dei uma risada, ninguém riu, mas as pessoas entenderam.
E foi lindo ver a recepção. Foi lindo sair e ir escondido para o banheiro masculino, fazer xixi, demorar mais tempo para ouvir a opinião das pessoas escondidinho e foi muito bom. As pessoas, mesmo em São Paulo, se identificando com esses personagens. Olha como são as coisas? Você vê que a gente está cantando a nossa ilha. Estamos falando de um bairro de Salvador, de um pedaço de Salvador que nem a Bahia toda o filme representa, é uma representação de um bairro de Salvador e ainda assim as pessoas ficaram emocionadas e se identificaram em São Paulo.
O filme tem uma homenagem aos grandes compositores de músicas da Bahia. O Roque representa um pouco isso, e desde o começo, questionamos: onde é que o Roque estaria musicalmente anos depois? Esse artista que tentou fazer sucesso, tentou ter reconhecimento. Ele vai para onde? Ele vai para uma música de mais fácil consumo? No primeiro momento, a gente pensou isso, depois a gente disse: não, ele vai justamente para a raiz, para o essencial, para o que ele precisa dizer, para o que ele quer dizer. E aí é muito lindo, porque ao mesmo tempo, você tem uma música com a roupagem mais moderna e no final ele faz reverência justamente a uma música antiga do Ilê Aiyê. Ele faz essa conexão e é muito lindo. E enfim ele se encontra. Ele veio para o mundo para fazer esse tipo de música e para fazer a arte que ele acredita, para falar no que ele acha que é útil e vai ajudar as pessoas. Essa foi a reflexão o tempo todo.
Uma coisa muito legal que eu acho que é entender para onde a música baiana foi. Tem um mapeamento da música baiana sem preconceito, de todos os estilos que estão sendo feitos na Bahia. Tem a Aninha, tem o Àttooxxá, a composição do Roque, o Ilê Aiyê, o Olodum, a Mariene de Castro, o Baiana System. O filme está também atento ao movimento que a música baiana está fazendo.
O que mais te marcou durantes estes 15 anos desde o primeiro Ó, Paí, Ó?
Quando eu vi o Ó, Paí, Ó pela primeira vez como público, eu achei aquilo muito poderoso. Depois eu tentei transformar no filme, antes da Monique. Eu lembro que quando eu cheguei no Rio de Janeiro, ao saber dessa potência que estava local que estava na Bahia, quem ia lá visitar e assistia, gostava muito, mas que não tinha circulado para o mundo. Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, o livro onde contém o texto de Ó, Paí, Ó, tinha três cópias. Eu fui com uma cópia para frente do escritório de Cacá Diegues. Eu não conhecia a Cacá Diegues, mas entendia que era um diretor interessado no Brasil. Ele não apareceu no escritório. Eu deixei um autógrafo e deixei o livro para ele lá, dizendo: por favor, leia. A segunda cópia, eu fui para a porta do Nós do Morro e eu era muito tímido na época. Eu fiquei meia hora na frente do Nós do Morro, no Morro do Vidigal, com aquele livro ali. Os atores entravam e saíam e eu não tive coragem de falar com ninguém. Meia hora depois eu fui embora, porque eu entendi que o Nós do Morro tinha uma relação que poderia se assimilar com a do Bando. Eu queria muito que o Brasil visse essa potência. E isso em 2000. Depois mostrei para o Guel Arraes. O Guel leu, olhou com carinho, mas não conseguiu transformar isso numa produção. Ano que vem a gente se junta, junta com o Bando de Teatro Olodum e a gente faz o primeiro filme.
Num primeiro momento, começou muito com vários preconceitos. A primeira crítica que a gente leu, o título era assim: ‘Estreia semana que vem o filme com o pior título já inventado na história do cinema nacional’. De repente, o filme estreou e teve uma identificação com o público. Foi para a televisão e teve mais identificação com o público e mais conhecimento do trabalho do Bando de Teatro Olodum, que é um dos grupos mais longevos da América Latina. Preciso dizer isso. O Bando tem 34 anos de existência e é um dos grupos de teatro com maior longevidade da América Latina. E o Bando ficou um pouquinho mais conhecido, mas continuou fazendo seu teatro. E quando, anos depois, aquela mensagem que aquele grupo lá da Bahia trouxe para o mundo volta e volta com relevância e volta através do público em rede social com identificação, é um sabor de vitória tardia. Mas antes tarde do que nunca. Porque tudo que estava sendo dito no Ó, Paí, Ó já estava sendo falado lá em 1992, quando a peça foi criada. E a gente demorou muitos anos para escutar, para absorver e para se tornar um produto. Que bom que esse produto existe. Mas eu sempre me pergunto assim: quantas coisas a gente não deixa passar pelo caminho porque simplesmente a gente não olha para quem nós somos, para quem está do nosso lado. Às vezes a gente fica mirando fora, em outro país, em outras identidades, em outras produções, querendo imitar outros formatos de cinema, outros formatos de contar a história. Quando aqui no nosso país a gente tem muita coisa valiosa.
O filme tem sofrido boicote e ataques por quem ainda não entendeu o uso das leis de incentivo a cultura como a Lei Rouanet. Como você está lidando com essa situação?
O que eu posso te dizer é que Ó, Paí, Ó não é, nunca foi e nunca será sobre mim. Ó, Paí, Ó é sobre esse grupo de artistas pretos à frente e atrás das câmeras, oferecendo seu talento, sua identidade, sua voz. Nunca o Ó, Paí, Ó poderá ser reduzido a mim. Minha parte aqui é continuar trabalhando, continuar lutando, continuar produzindo. É isso que eu tenho feito desde os dez anos de idade, quando eu comecei a profissão e eu não sei nem fazer outra coisa nem de outro jeito. E tem muita gente que quer escutar essas coisinhas aqui que a gente tá fazendo, seja na comédia fazendo o Foguinho, Mister Brau, seja em projetos mais densos como Cidade Baixa, Madame Satã ou Ó, Paí, Ó. E essa é a minha missão que meus ancestrais mandaram e eu vou continuar fazendo.
Você acha que a pessoa negra é está cada vez mais armada academicamente, graças aos escritores, filósofos negros contemporâneos?
Isso é uma realidade de uma boa parcela da sociedade que tem feito muita diferença no nosso dia a dia. Inclusive, tanto na leitura dos novos autores quanto no resgate de autores que já estão aí há muito tempo, como Lélia Gonzaga, por exemplo. Beatriz Nascimento, Milton Santos, que tem voltado com força graças a uma geração que entrou nas universidades e que está promovendo esse conhecimento, que está mudando as universidades e as suas famílias, o dia a dia, a internet. Isso não é uma realidade total, isso é uma parcela, mas é uma parcela que faz muita diferença. A gente tem visto isso em empresas, nos veículos de comunicação, nas produções de audiovisual, na televisão, obras literárias. Isso é uma realidade. E acho que ela é muito consistente e, pela primeira vez no meu tempo de existência, é um movimento que eu vejo que é mais promissor de continuidade. Lembro de nos anos 1990, houve um período que foi um movimento. Depois arrefeceu, recuou.
Esse movimento que vem agora, é muito interessante, porque tem mistura de gerações, tem Sueli Carneiro e você tem Gabi De Pretas. São pessoas e várias vozes que estão falando, ao mesmo tempo que ele é acadêmico, ele traz conceitos também é extremamente popular em canções, em música, em estética, em posicionamento, no cabelo que se usa, no lugar onde se vai, na roupa em que se coloca. Isso é um movimento muito interessante, porque ele infiltra se na cultura de uma maneira que às vezes é muito difícil, porque a nossa questão do preconceito, do racismo, é porque tá entranhado na cultura, tá nos mínimos hábitos. Então, isso eu vejo muito positivamente. Mas a luta ainda é grande, ainda tem muita coisa a ser conquistada, muitos ouvidos a serem conquistados e compreenderem as coisas. Muita conversa ainda vai rolar.
O Brasil fora do eixo Rio-São Paulo ainda é visto como regional. Você acredita que a Bahia ainda é vista neste contexto?
Nós temos vários ícones baianos, grandes referências de Caetano, Gil, Ivete, vários ícones que explodem nacionalmente. Mas eu sinto que ainda aparece o outro. Quando se trata do Brasil oficial. Parece que é o outro, que não somos nós. Às vezes é tratado como algo exótico, com alguns estereótipos que permanecem ainda o estereótipo da preguiça, do falar devagar, do mau atendimento. Mas ele vem sendo combatido por uma nova geração que compreende o que é pluralidade e que ela está também nas regiões do país. Com pessoas da minha geração ainda ouço piadas, tentando encaixar numa caixinha a baianidade, as regionalidades. E as novas gerações acham isso uma babaquice, uma bobagem, estão em outro lugar e isso eu acho muito legal.
Mas o Brasil ainda precisa olhar para si mesmo e compreendendo a sua pluralidade, entendendo que isso é o nosso maior valor. O Ó, Paí, Ó é um exemplo disso. É uma vitória o público de São Paulo se emocionar com as histórias desses personagens, gargalharem com coisas que são ditas em situações que parecem regionais, mas, que na verdade, acontecem na casa de todos nós, falado com sotaque baiano, com trejeitos de um pedaço de Salvador, com falas e raciocínios que são muito localizados e ainda assim teve identificação e aproximação. Ó, Paí, Ó e projetos como esse ajudam a abrir as mentes.