2. A Escravidão de Mouros e Pretos em Portugal
ESCRITO POR MARIO MAESTRI
As práticas e concepções escravistas foram introduzidas na Península Ibérica pelas legiões romanas vitoriosas e, mais tarde, mantidas como forma de dominação subordinada pelos dominadores visigodos. Em 711, os muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar, mantendo-se na Ibéria até a perda definitiva de Granada, em 1492. A luta à morte entre cristãos e muçulmanos pela península enfatizaria fortemente a escravidão.
Inicialmente, os conquistadores cristãos passavam no fio da espada as populações muçulmanas derrotadas. Logo, apenas os guerreiros eram eliminados, reduzindo-se à escravidão os restantes. As necessidades da exploração das conquistas, em boa parte despovoadas pela guerra, ensejaram que razias fossem lançadas sobre os territórios muçulmanos para capturar trabalhadores a serem explorados nas cidades e campos. Difundiu-se também a captura e venda de muçulmanos assaltados no Mediterrâneo e nas costas da África do Norte. Os muçulmanos procediam do mesmo modo com os cristãos.
A Reconquista teria melhorado a sorte dos servos pessoais originais, metamorfoseados em servos da gleba e a seguir em colonos livres. Decaiu igualmente a importância dos antigos cativos e fortaleceu-se a dos cativos islamitas. A retórica justificadora da feitorização do muçulmano rompeu radicalmente com a racionalização aristotélica da escravidão. A escravidão do muçulmano não se devia a uma pretensa inferioridade natural. A excelência da civilização islâmica mediterrânea e a forte identidade étnica, sobretudo entre o muçulmano ibérico e o moçárabe, ou seja, cristão que vivera na Ibéria islâmica, impediam propostas de inferioridade natural do cativo muçulmano.
Agora, a escravidão era justificada pela adesão a uma crença que ofendia gravemente o verdadeiro deus, nos céus, e devia, portanto, ser castigada na terra. Era a guerra justa contra o inimigo da fé divina, determinada pelo Estado e pela Igreja, que justificava a escravidão. No fundamental, o mesmo critério apoiava a escravidão de cristãos pelos muçulmanos. Entretanto, no mundo ibérico, cativos cristãos seguiam sendo escravizados por senhores cristãos, ainda que em número sempre decrescente.
No mundo romano, o trabalhador escravizado era denominado, sobretudo, de servus. Foi tão lenta e imperceptível a dissolução e metamorfose das relações escravistas que o trabalhador feudal emergiu sendo tratado do mesmo modo nas línguas européias que os antigos cativos – servus, servo, serf etc. No século 10, quando da retomada relativa do escravismo na Europa Ocidental, foi necessária uma nova designação para o trabalhador escravizado. As guerras de Otão I (912-973), o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia, nos Bálcãs. Com o passar dos anos, o termo escravo perdeu o sentido étnico-nacional para descrever o homem escravizado. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio.
Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro, pois os muçulmanos que invadiram e colonizaram a península Ibérica provinham da Mauritânia (Saara Ocidental). Logo, em Portugal, o muçulmano feitorizado era designado de “mouro”, não importando de onde viesse. Em 1444, começaram a chegar a Portugal as primeiras partidas de negro-africanos, capturados quando do avanço marítimo lusitano ao longo do litoral atlântico africano. Por longas décadas, mouros e negro-africanos trabalhariam como cativos, lado a lado, em Portugal, nas cidades e nos campos. O neologismo português mourejar teria o significado de trabalhar como cativo ou, mais tarde, como negro.
Em Portugal, a palavra negro era usada para designar os homens de pele mais escura, livres e escravizados. Como os negro-africanos eram ainda mais escuros, foram designados diferencialmente de “pretos”. Daí serem chamados de “mouros pretos”, sem serem provenientes da Mauritânia e muçulmanos. Em inícios do século 16, quando a escravidão dos negro-africanos se sobrepunha já claramente à feitorização de muçulmanos, o uso da palavra escravo difundiu-se em Portugal, já sem qualquer referência à religião e à origem nacional.
Então, tínhamos “escravo mouro”, “escravo negro”, “escravo preto”, “escravo branco”. Em Portugal, com a forte dominância da escravidão de negro-africanos, “preto” tornou-se sinônimo de cativo e de escravo. No novo contexto, a visão aristotélica da escravidão como conseqüência de pretensa inferioridade natural foi retomada e enfatizada como jamais, como a principal justificativa daquela instituição. A pele branca seria sinal de excelência, a negra, de inferioridade. Nascia assim o racismo anti-negro.
Mário Maestri, 62, é professor do curso e do programa em pós-graduação em História da UPF. É autor, entre outros trabalhos, de O escravismo antigo e O escravismo brasileiro, publicados pela Editora Atual.
Fonte: Correio da Cidadania