Rotas de Fuga para o Aquilombamento

Quando iniciei meu trabalho atual como fotógrafo negro e de pessoas pretas, pensava em como transmitir textualmente, sinteticamente, aquilo que eu queria passar sobre a minha fotografia. Refletir sobre isso foi sobretudo salientar a epistemologia do meu trabalho. Quer dizer, não falando academicamente, mas eu não queria um slogan, algo publicitário, mas sim, um conceito.

A partir desse pensamento, me veio à mente o álbum “Fugio – Rotas de Fuga para o aquilombamento” da Tamara Franklin. E que força tem esse título!

A partir de então, pensei que poderia pegar o conceito emprestado para refleti-lo na minha obra fotográfica.

E o que são as Rotas de Fuga para o Aquilombamento? São justamente as diversas possibilidades que os negros escravizados encontram para manterem-se como grupo, relembrando de sua cultura, religiosidade, modo de viver e de ser e adaptando-a à nova realidade. 

Miolo do Boi da Linda Joia de São João. Foto: Lucas Barbosa (@lucasbarbosanacidade)

É verdade que muitos Quilombos são criados visando territórios políticos e militares. Mas é, também, verdade que eles possibilitam, a partir disso, a transformação de um novo tipo de cultura, uma cultura que resgata África e, aqui, se transforma. Assim, é nos quilombos que são praticados o Tambor de Crioula, o Bumba Boi, as manifestações afrorreligiosas (candomblé, Mina, Terecô, Umbanda, etc.) e enfim, toda uma leva cultural que se insere dentro desses espaços, como forma de reconhecimento de nós mesmos como grupo, que coexiste com o Estado dentro do território do Brasil e possui características próprias.

Então, as Rotas de Fuga são os caminhos para a liberdade, de ser e de viver. Não por acaso existam bairros historicamente negros com este nome (vide São Paulo – SP, Salvador – BA e São Luís – MA). E as minhas fotografias são, ou se pretendem, retratos dessa liberdade.

Em que pese toda a nossa luta como escravizados ou descendentes destes, e sim, sempre é relevante falarmos sobre isso, salientando que os problemas estruturais da escravidão ainda existam; não podemos deixar de lado tudo o que foi deixado por nós dessa herança criada nestas Rotas de Fuga, enfatizando-as a partir de todas as possibilidades existentes. Aí entra a fotografia.

Tambor de Crioula em festa de promessa. Foto: Lucas Barbosa (@lucasbarbosanacidade)

A fotografia é objeto de memória. Desde que elas existem, adentramos ao mundo-imagem, palavra essa que nem sempre foi tão atrelada assim como hoje é à fotografia. Adentrar a esse mundo é entender a memória como fotográfica, como revisitar álbuns de fotos em busca da reconstituição de lembranças dos fatos. Esta memória foi, há muito, negada aos negros brasileiros.

Quer dizer, quantos brancos têm fotografias desde a geração de seus bisavós? e quantos negros as tem? 

A fotografia, por diversos motivos, foi negada aos pretos. O conceito de belo na fotografia é também, branco. Não por acaso os cartões Shirley da Kodak eram considerados racistas, e só foram modificados quando reclamações da indústria branca vieram à tona por não representar com fidelidade a cor do chocolate!

Afinando o Tambor Grande. Foto: Lucas Barbosa (@lucasbarbosanacidade)

Portanto, vejo o filme Travessia de Safira Moreira e reflito. Os negros atualmente tem uma relação muito profunda com registros fotográficos. Meus familiares gravam absolutamente tudo com o celular, a cada momento de festa e alegria. Nossos pretos fazem questão de uma pose bonita para as fotos. Tudo isso para dizer que: nós pretos temos DIREITO à fotografia, como forma de memória e exaltação de nossa cultura!

Faço esse texto e penso em várias questões. Ainda que tenhamos direito ao registro fotográfico, ela ainda é muito negada aos pretos. Não diria como assunto, já que pessoas brancas têm paulatinamente pegado nossas culturas e fotografado a seu bel prazer. Não que isso seja um problema em si, desde que tenha uma sinceridade no trabalho, sem esses parasitismos dos acadêmicos que só querem estratificar nossa cultura para reconhecimento individual e aplausos. Mas ela é negada ainda, eu dizia, aos pretos que fazem arte para os próprios pretos, principalmente quando se tratam de espaços dedicados às artes.

Ainda assim, meu trabalho, especificamente falando, não pode ser negado a meu povo negro, a quem o destino.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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