Até onde a vista alcança, o Rio Grande do Sul é dor, destruição. E vontade de recomeçar. A tragédia socioclimática que engolfou o estado, além da extensão, trouxe de ineditismo também a agonia duradoura. O Brasil é país, infelizmente, íntimo de desastres naturais e crimes ambientais. Que o digam Rio de Janeiro e Minas Gerais, São Paulo e Bahia, Amazonas e Santa Catarina, Maranhão e Pernambuco. A devastação se dá, iniciam-se os resgates, começa a limpeza, computam-se os prejuízos — quase nunca ressarcidos.
Desta vez, está diferente. Maio passou da metade, e a água que invadiu Porto Alegre segue muito acima da cota de inundação do Guaíba. Cidades às margens da Lagoa dos Patos ainda veem o nível subir. A chuva para e volta; a lama fétida persiste. É luto sobre luto. É vida que não encontra jeito de voltar ao normal — nem mesmo ao cotidiano transtornado depois do trauma. Tudo em suspenso.
Só quando a água baixar será possível calcular o valor das perdas materiais. Preliminarmente, o governo gaúcho estimou R$ 19 bilhões. O governo federal levantou R$ 60 bilhões em medidas de transferência de renda, antecipação de benefícios, garantia de crédito, juros subsidiados, suspensão de dívida, adiamento de tributos. Alcançam famílias, trabalhadores, empresas, prefeituras, estado.
Há uma pane logística. Ninguém é capaz de informar quando estradas serão devolvidas ou em que momento o aeroporto internacional de Porto Alegre estará apto a operar novamente. Um representante do setor de cerveja disse que 80 estabelecimentos em Porto Alegre estão sem condições de operar por destruição ou falta de demanda. Há pedidos de ajuda para vender e entregar noutras partes do país ou no exterior, para que a produção seja escoada. Preocupa a situação dos rebanhos e das lavouras do estado, o segundo mais importante do agro brasileiro, segundo o IBGE.
Cidades terão de ser, mais que reconstruídas, repensadas. Autoridades têm mencionado a urgência da recuperação, mas não há de ser nos velhos moldes. Fracassou o modelo que desmatou vegetação nativa, estrangulou rios, multiplicou monocultura, impermeabilizou solo. A catástrofe deveria ter varrido do mapa os negacionistas climáticos, que, em funções públicas ou milícias digitais, induziram populações a embarcar — de novo e sempre — no modo de exploração Brasil Colônia. Patrocinam um progresso que enriquece poucos e humilha todos.
A tragédia é humanitária, econômica, ambiental, mas sobretudo política. É do embate político franco, severo e firme — sem sutileza — que pode emergir um plano de adaptação às mudanças climáticas capaz de salvar brasileiras e brasileiros. Não tem cabimento, a esta altura, um vereador ocupar a tribuna para defender derrubada de árvores, como fez Sandro Fantinel (PL), em Caxias do Sul.
Enquanto o Congresso aprovava a lei complementar de alívio na dívida do RS com a União para financiar a reconstrução, a CCJ do Senado apreciava o projeto que cria normas para elaboração de planos de adaptação à mudança do clima. O texto, que vai ao plenário, recebeu votos contrários de dois dos três senadores do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro e Carlos Portinho, ambos do PL. Desconhecem que o estado que representam tem 75 dos 92 municípios classificados como suscetíveis a desastres climáticos, segundo o Cemaden. Hamilton Mourão (Republicanos), ex-vice-presidente e senador pelo RS, também votou contra.
A Defesa Civil gaúcha, até ontem, mapeara 584 dos 839 alojamentos com vítimas da catástrofe. Contara 45.799 pessoas em 74 cidades, cerca de 60% dos cerca de 77 mil abrigados. A composição dá a medida do desafio: mais de 11 mil famílias, 3.081 crianças de até 5 anos, 6.427 idosos, 1.568 pessoas com deficiência. Em 41% dos abrigos há gestantes ou puérperas; em mais de um terço, migrantes. Quilombolas e indígenas estão isolados em áreas igualmente devastadas.
A composição tão diversa dos necessitados sugere a complexidade da assistência. Não é por acaso que especialistas em políticas públicas e organizações sociais estão segmentando pedidos de doação. Além de comida e água, urgentes por muito tempo, idosos e crianças demandam fraldas; mulheres, absorventes; homens, lâminas e espuma para barbear; todos, escova e pasta de dente, sabonete e xampu.
Na volta para os lares que ainda existirem, há o esforço de limpeza. Correios pediram envio de material seco para facilitar o transporte aéreo; escolas de samba do Rio produziram rodos. O presidente Lula anunciou o vale de R$ 5.100 para reposição de móveis, eletrônicos e utensílios domésticos. As famílias precisarão lidar com aumentos de preços que habitualmente sucedem a tragédias. Do quilo do arroz aos terrenos, tudo encarece.
Muita gente já avisou que algumas localidades não abrigarão novas construções. Os deslocados climáticos — sob luto, trauma, risco de doenças, prejuízos financeiros e patrimoniais — arriscam perder também os territórios onde construíram a vida toda, alguns por gerações. Essa transição demanda cuidado extremo: a menor distância possível, a preservação dos laços comunitários e familiares, acomodação digna e serviços e equipamentos públicos de qualidade.
Medellín, na Colômbia, décadas atrás, gestou no urbanismo social um modelo de construção comunitária que estreitou laços entre vizinhos e cimentou confiança no setor público. Duas famílias compartilhavam uma mesma casa, enquanto a do outro era erguida em mutirão com assistência técnica. Conviviam e construíam, coabitavam e transformavam. A dignidade humana não pode se perder em nenhum momento da caminhada que começará. Já desviamos demais.