De volta ao Grupo Especial após o segundo rebaixamento de sua história, o Vai-Vai levará para a avenida o enredo “Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o hip hop: Um Manifesto Paulistano”.
Em entrevista à CBN, o carnavalesco Sidnei França destaca as semelhanças entre o desfile de escola de samba e o movimento que completou 50 anos de história no mundo e 40 no Brasil, no segundo semestre de 2023: “Nós trabalhamos três vertentes artísticas no carnaval: visual, música e dança. E o hip hop também é isso: visual com o grafite, dança com o break e música com o rap”.
Mas, o Vai-Vai quer mostrar muito mais do que as semelhanças entre os gêneros. Quer, na verdade, contar a saga do movimento hip hop em São Paulo para discutir a cidade, suas ruas e sua relação com a arte.
“É um enredo que promete o hip hop, mas entrega um debate sobre a São Paulo que nós temos e a São Paulo que nós projetamos para o futuro”, conta Sidnei.
Multicampeão do carnaval na Mocidade Alegre, ele já participou do desfile do Vai-Vai no ano passado, no Grupo de Acesso, em paralelo com o seu trabalho na Águia de Ouro – onde também foi campeão em 2020. Finalizado o carnaval, escolheu o Vai-Vai como destino para 2024.
O início do hip hop
A Escola do Povo, maior campeã do carnaval paulistano, vai abrir o seu desfile fazendo uma reflexão sobre o movimento modernista que é considerado um marco na arte paulistana. Para o carnavalesco, a Semana de Arte Moderna de 1922 tem sim a sua importância cultural e histórica, mas merece críticas por não ter absorvido e reverberado as formas mais populares de arte.
Por isso, ele traz logo de início uma ala que é o “levante dos excluídos”. Logo atrás, o primeiro carro alegórico pretende apontar o discurso da elite paulistana como ultrapassado: “Trarei uma estética aristocrática, mas toda mofada. Como se aquele discurso fosse uma roupa velha que não serve mais”.
Toda essa contextualização é feita para entender de onde surge o hip hop: de uma cada da população que, renegada pela elite, precisou desenvolver a sua cultura pelas frestas da cidade.
Foi assim que, na década de 1980, explodiu a cena hip hop em São Paulo. Uma das ideias do desfile será reviver o cenário do centro da cidade, naquele período com as luzes de neon dos cinemas onde os jovens pretos descobriram o hip hop americano e na estação de metrô do Largo São Bento, onde rappers, MCs e dançarinos de break (os bboys e bgirls) se encontravam para falar de música.
“O metrô era a internet da época”, explica Sidnei. “As pessoas vinham de todas as regiões para trocar informações. E os seguranças do metrô desciam a porrada. Havia um incômodo, uma incompreensão e uma intolerância. Eram jovens pretos e pobres e desse choque surgiu muita história. No desfile, os seguranças e os bboys vão se estranhar, mas os seguranças vão cair na dança. A arte venceu”, antecipa Sidnei.
No desfile, serão homenageados ícones do hip hop dos anos 1980 e 1990 como o dançarino Nelson Triunfo, o rapper Thaíde e os Racionais MC’s, que lançaram no álbum “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, a música “Capítulo 4, Versículo 3” que foi parar no título do enredo.
Vai-Vai também é hip hop, rap e trap
A relação do Vai-Vai com o rap ultrapassa o enredo. Na verdade, há muitos anos figuras importantes da cena musical paulistana como Rappin Hood sugeriam que a temática fosse abordada pela escola.
“O Vai-Vai sempre teve o hip hop presente. Vários músicos da nossa bateria tocam rap e eu mesmo toco rap desde 2000”, conta Mestre Beto, que dirige a bateria da escola alvinegra ao lado do histórico Mestre Tadeu, que completa 50 anos de avenida em 2024.
Para Sidnei França, essa mistura tem tudo a ver com a geografia da cidade:
“É uma escola que fica no Centro, que na época ocupava a Praça 14 Bis. Aquela região da avenida 9 de Julho era um corredor para quem saísse da Zona Sul e quisesse ir para o Centro. O Vai-Vai é uma escola de vanguarda, underground, conectada com a efervescência cultural”, explica.
Mestre Beto conta ainda que, ao longo dos anos, a bateria sempre aproveitou ocasiões menos decisivas, como apresentações em quadras de outras agremiações, para fazer um “boom bap”, que é uma batida típica do rap.
Agora, com este enredo e num contexto em que o quesito bateria passou a exigir das escolas algum arranjo diferenciado, a escola mais tradicional da cidade vai dar um inesperado passo adiante e levar o som do trap – uma vertente do rap – para o desfile oficial:
“A gente achou a batida do trap na parte que diz ‘solta o som, alô DJ / que eu mando a rima pra embalar manos e minas / na batida perfeita meu rap / é a voz’. O rap e o samba vêm da mesma árvore. Mudam os caminhos, mas o final é o mesmo. E uma das poucas baterias ainda tradicionais de São Paulo introduziu o trap no samba-enredo sem perder a identidade”, garante o mestre.
Segundo Beto, esse processo foi conduzido em parceria com o produtor musical DJ Cia.
Grafite na avenida
Depois de falar do rap e do break, o desfile vai exaltar a outra das vertentes do movimento hip hop: o grafite. A terceira alegoria do desfile vai reproduzir o projeto Favela Galeria, que, a partir do trabalho dos grafiteiros, transformou uma comunidade no bairro de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, em uma galeria de arte a céu aberto.
A alegoria está sendo desenvolvida por oito artistas negros e periféricos – quatro homens e quatro mulheres – numa tentativa de romper com os padrões estéticos dos desfiles no Anhembi:
“Esse enredo me tirou da zona de conforto porque eu mesmo percebi que eu estava domesticado pelo paralelismo, pela simetria… Procurei artistas que tivessem uma produção que fugisse desse padrão erudito”, conta Sidnei França.
O encerramento do desfile será o manifesto paulistano do samba e do hip hop. É quando os ritmos se juntam para ocupar os espaços de São Paulo e para apagar os nomes de bandeirantes e ditadores das ruas e rodovias da cidade: “A gente quer relativizar os símbolos e as construções que deram a São Paulo e que não nos servem”.
Os logradouros paulistanos e as estradas que cortam a capital paulista ganharão, na última alegoria, os nomes de figuras como Madrinha Eunice, fundadora de uma das primeiras escolas de samba de São Paulo (a Lavapés); Brenda Lee, reconhecida por seu trabalho de assistência a portadores de HIV na década de 1980; e Sueli Carneiro, fundadora do Instituto Geledés, de grande importância para o processo de politização de rappers e MCs.
Confira o enredo: