A colunista responde a um e-mail de um admirador

‘Você, sua amada e o amor infinito de vocês estão guardados comigo’

por Flávia Oliveira no O Globo

Querido Rubens,

Peço desculpas por demorar a te responder. Precisei de uma semana desde que sua carta aterrissou na minha caixa virtual, porque decidi tornar público o seu contato privado. Demonstrações de afeto, meu amigo — permita-me assim chamá-lo — andam tão raras que precisam ser celebradas e exaltadas e compartilhadas tanto quanto possível. Eu não coube em mim depois de ler suas linhas. Minha família, idem. Não sei se você sabe, tenho uma filha de 22 anos. Ela carrega a ironia e o ceticismo da juventude, mas se emocionou com seu e-mail. Faz pouco tempo, conversávamos sobre pessoas idosas militando pelo direito de antecipar o fim de uma existência já longa — imagino que tenha lido sobre David Goodall, o cientista australiano que, aos 104 anos, contratou suicídio assistido na Suíça. Você, aos 92, me escreveu para relatar um amor da vida toda. Mais que isso, sobre como dois nonagenários mantiveram a relação rejuvenescida quase oito décadas e, agora, além da morte.

Você, meu querido, contou que começou a amar uma jovem aos 14, e nunca mais parou. Foi seu primeiro e único amor, sua primeira e única mulher. Não houve outra boca, outro beijo, você revelou. Quando eu nasci, em 1969, o amor de vocês ia longe. Contudo, já madura, cansada de guerra, fui eu a moça a despertar ciúmes na sua amada e, nas suas palavras, apimentar o casamento. E eu me pus a imaginar o casal, lado a lado no sofá, TV ligada, Maria Beltrão gargalhando, você me elogiando, sua amada desdenhando, vocês se reapaixonando.

Rubens, você me perguntou: “Desde quando há lugar para paixão num casal de 92 e 90 anos?”. Eu te devolvo: “Há lugar para paixão?”. Outro dia, casaram-se o príncipe Harry, sexto na linha de sucessão da rainha Elizabeth II, e a atriz afro-americana Meghan Markle. Acordei cedo para assistir à cerimônia. Encantam-me os compromissos selados com rituais. Pela TV já acompanhara a união dos pais do noivo. Não faz um século, mas parece, de tanto que o mundo mudou desde aquele julho de 1981.

Foram tantas viradas, que a capela da nação outrora escravocrata abrigou o sermão de um reverendo negro que, falando de amor, citou Martin Luther King. Ouviu um coral inteiramente negro cantar a composição de um artista negro. Testemunhou a emoção da mãe da noiva, uma negra de cabelo trançado, sozinha e altiva no altar. Eu senti naquela celebração uma brisa de transformação. Sou dessas que buscam explicação, terrenas ou não, em cada cena, solitária palavra, minúscula expressão.

No dia seguinte, li que a noiva, por aqui, seria branca; eu, encardida. Nada preta ou nada branca são conceitos que o racismo brasileiro usa para tentar silenciar os que assumiram a identidade negra e dela se orgulham. São tempos estranhos em que a utopia da inclusão é rebatida com ironia, cinismo ou ódio. Direitos humanos, aquele conjunto de princípios listados num documento quase septuagenário, tornaram-se expressão criminalizada; feminismo, doença de mal-amadas.

Você pediu licença para me chamar pelo diminutivo, dizendo que poderia ser meu bisavô. Nem tanto, Rubens — está claro que te pareço mais nova. Mas eu não conheci nenhum de meus avôs, e sua carta me fez sentir neta. Na minha religião reverenciamos os mais velhos e cultuamos a ancestralidade. Os que atravessaram o ciclo completo da existência nunca desaparecem. Sua amada já não está entre nós, mas você, Rubens, ela, de quem você não revelou o nome, e o amor de vocês serão lembrados. Estão os três guardados comigo. Fazem parte da minha vida, tanto quanto eu, pela tela da TV, um dia entrei na de vocês.

Com amor, Flavinha

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