A militante e o motorista do busão

O ônibus cortava e recortava pela avenida principal. Nós, os passageiros, sacolejávamos sem saber que na frente havia uma SUV desafiando o motorista. Os dois brincavam de Velozes e Furiosos quando uma senhora, ao tentar se levantar, desequilibrou-se, bateu no ferro, machucou o braço e resolveu espernear:

Por Matheus Pichonelli  Do Yahoo

-O sr. é um irresponsável.

A fala foi silenciada com uma pergunta retórica:

-Quem está dirigindo? Eu ou a senhora?

-O sr. está carregando seres humanos, e não gado.

O assunto foi encerrado de prontidão:

– Olha, minha senhora. Vai te catar. Se você não tem marido em casa pra se preocupar, o problema é seu.

Humilhada, a passageira voltou ao seu lugar sem saber exatamente como rebater.

Tudo naquela fala tinha uma simbologia conhecida: um homem no comando dizendo onde era o lugar de quem queria e não podia conduzir ou se queixar pela condução. Teria o motorista usado o mesmo argumento para calar um homem?

Duvido.

Para ele, a falta ou o excesso de homem em casa era a métrica para acusar o destempero de quem havia pouco quase estourara o braço e resolvera se queixar. O argumento era mais velho que a roda. Desde cedo aprendemos, no ambiente familiar ou escolar, que a fulana só conseguiu o cargo porque dormiu com o chefe. Ou que a vizinha “desquitada” não sabia dar limite aos filhos. Ou que o humor da professora estava relacionado ao seu estado civil. Ou que mulher ao volante é perigo constante. Ou que os deveres do corpo e do lar eram incompatíveis com a vida pública. Em todo caso, a discussão se encerrava com uma grande interdição: “é puta”. A partir dali, toda violência contra era não apenas compreensível como recomendável.

Já adultos, descobrimos que é fácil reconhecer o ogro quando ele está sentado no sofá tomando cerveja, mastigando frango, comentando as aleivosias da vizinha e dando tapinhas na esposa que chama de gordinha. É fácil isolar o Homer Simpson e dar a ele o atributo do patriarcado. Difícil é ouvir, do alto do pedestal, grupos a quem somos supostamente solidários dizerem o que não queremos ouvir: que na prática não somos assim tão diferentes daquele motorista ou do pai de família que tenta convencer a mulher a ficar em casa apontando todas as desgraças da vizinha solteira.

A diferença não é o que é dito, mas como.

Vamos supor, por exemplo, que certo dia uma mulher reclame da forma como é retratada em uma peça. Vamos supor que essa mulher seja negra. Vamos supor que os condutores da discussão estejam interessados em dizer que a maldade está no olho de quem olha – afinal o que importa é a intenção e não a ofensa. Vamos supor que o tema tenha chegado às instancias onde é decidido não só quem ou o que ofende, mas quem pode dizê-lo e como. Vamos supor que quem diz os ques e os comos tenha muitos anos de estudo.

Vamos supor que esses anos de estudo sejam usados para lembrar aos ofendidos que eles apenas não entenderam bem. E que se negar a entender é só birra de quem não estudou o suficiente para desenvolver a maturidade e a grandeza de espirito de quem fala e sempre falou.

Vamos supor que todos esses anos de estudo e discurso bonito não sejam suficientes para explicar o sofrimento de quem sofre. E que, ao assumir o papel de sujeito e não de objeto da causa, a mulher negra passe a rejeitar a interlocução de quem valoriza ou minimiza o quanto ela sofre. Vamos supor que elas são muitas e se organizam em rede. É quando os sábios e doutores da lei começam a fundir a cuca.

Porque uma coisa é um debate entre cavalheiros. Outra, bem outra, é ter dedo de minoria apontado para a cara. Se não adianta dizer que o interlocutor não entendeu, se não adianta dizer que quem dirige é ele, o passo seguinte é lembrar à interlocutora que ela é só uma menininha estúpida. Uma menininha estúpida que usa métodos fascistas para censurar uma expressão que não os atinge diretamente.

Alguns (as) podem simplesmente ouvir e voltar ao assento. Outros(as) podem seguir berrando: “quem não entendeu nada são vocês”. O resultado é o princípio de um debate honesto para um começo de conversa, mas há quem chame de “linchamento”, “censura”, “fascismo”, “vitimismo”.

No meio do quiproquó, vamos supor que alguém resolva lembrar que “chamar populações historicamente silenciadas de ‘censuradoras’ é atribuir um falso poder de autoridade a elas com o objetivo de excluí-las do debate ético a respeito de suas próprias causas”. Ou que “o termo fascismo é banalizado quando usado para falar de grupos oprimidos”. Ou que, se a base do fascismo é o autoritarismo, grupos que nunca tiveram autoridade não podem ser autoritários. Vamos supor que esta pessoa seja também uma mulher.

Bom, aí a tática de quem (não) ouve o que não quer ouvir é a do motorista do meu busão: desqualificar a acusação pela desumanização de quem acusa. Como? Como sempre aconteceu: dizer que o problema é a malícia de toda mulher – ou qualquer outra minoria que tente falar. Aos gritos de “fascistas” e “linchadoras” unem-se os ataques baseados na vida pessoal.

Meu motorista provavelmente não sabe o que é fascismo, acha o feminismo uma conversa estranha de gente malcomida e faria careta se ouvisse a palavra vitimismo. Mas ele sente sua honra atingida quando uma mulher diz a ele como deve dirigir.

A diferença entre ele e um professor universitário, escritor ou político que acha normal bater como homem em uma mulher que fala como um é que ele aciona o gatilho sem rodeio, e os demais usam a tática de revista semanal que inverte conceitos para defender o seu conforto. Parece reação indignada, mas é só misoginia com respaldo teórico.

Nesse status original, a participação de minorias no debate é bem-vinda desde que ela se limite aos suspiros ou à obediência. Quando ela diz que não precisa de interlocutor e pode falar por si, parte de um poder hegemônico (branco e masculino) se perde. Não só. Esquerda e direita se abraçam quando, desconfortáveis, os tiozões de sempre decidem sair do armário (ou do sofá) para externar seu desconforto. Devemos essa ao feminismo.

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