Elza Soares denuncia violência doméstica e racismo em “A Mulher do Fim do Mundo”

Elza Soares é “A Mulher do fim do mundo”. Não existiria outro título melhor para o mais novo álbum da artista repleto de inéditas. Até porque, se os dias no “planeta fome” estivessem contados, muito provavelmente Elza seria uma das raras pessoas que ressurgiriam intactas após a poeira abaixar. Seja pelas várias superações e perdas que sofreu ao longo de oito décadas – como recente morte de mais um filho, Gilson – quanto pela voz que permanece poderosa e única, mesmo após uma delicada cirurgia na cervical e lombar pela garganta.

Por Neto Lucon Do Nlucon

No espetáculo que realizou sábado (3) e domingo (4) no palco do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, as cortinas se abriram e qualquer expectativa apocalíptica foi superada. Elza reina soberana em um gigantesco trono, peruca roxa, maquiagem de rainha e um vestido de raízes que percorre as escadas. É cercada por músicos – um quarteto de cordas, Felipe Roseno, Kastrup, Kiko Dinuccie Rodrigo Campos, Marcelo Cabral – que pareciam cultuar a magnitude de musicar a sua voz. No cenário ao fundo, bolhas de plástico – que ela ama estourar.

Sem titubear, canta Coração do Mar (Oswald de Andrade/José Miguel Wisnik) e mostra que não está no fim do mundo para brincadeira. A voz inconfundível e rasgada está com fôlego e expõe os “pedaços de sangue” do “navio humano, quente e negreiro do mangue”. Em seguida, traz o título que dá nome ao show, de Romulo Fróes e Alice Coutinho. Ainda em recuperação, permanece sentada, traz a “lágrima de samba na ponta dos pés” e um repetido apelo no alto dos seus 79 anos: “me deixem cantar até o fim”. O público se emociona.

O show segue com “O Canal” (Rodrigo Campos) – que traz na letra pura poesia e tem uma batida leve, gostosa, ótima – “Luz Vermelha” (Kiko Dinucci/ Clima) – que nos faz mergulhar num mundo “sem ninguém na rua, ninguém no açougue, ninguém lá para abandonar”. E este trecho é cantado exaustivamente, até que todos estejam submersos na repetição. Na quinta música, retoma o sucesso “A Carne” (Marcelo Yuka/ Ulisses Cappelletti/ Seu Jorge), que esteve no álbum Cóccix até o Pescoço. As músicas “Malandro” (Jorge Aragão) e “Volta Por Cima” (Paulo Vanzolini) também marcam presença.

Assim como A Carne virou um grito e uma denúncia para a comunidade negra desde 2002, Elza segue firme com a veia política neste novo trabalho. Depois de “Dança” (Cacá Machado/ Romulo Fróes) e “Firmeza” (Rodrigo Campos), ela entona a música política do álbum: “Maria da Vila Matilde” (Douglas Germano). Faz menção às agressões que já sofreu, até mesmo de Mané Garrincha, e um alerta para as mulheres que sofreram de violência doméstica. Pede até para que elas liguem para o 180 em caso de agressão: “Se a da Penha já é brava, imagine a da Vila Matilde”. Reforça o 180 e todos aplaudem.

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É justamente pela questão política que abarca todo o trabalho de Elza que a música “Benedita, aplaudidíssima pela performance do cantor Rubi, causou empolgação e certo desconforto. Partes da letra de Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamante, que tem grandes sacadas e bons jogos de palavras, me fez questionar se ela de fato dá humanidade à travesti ou reforça preconceitos. Termos como “traveca” e a associação do grupo ao crack ou a navalha na boca – prática lááá dos anos 80 – colocaram em xeque o lado transgressor.

O show volta a emocionar com Solto (Marcelo Cabral e Clima), cujo arranjo de cordas no leva a um transe guiado pela voz de Elza. Mesmo sentada, ela “bota pra fuder” na música “Pra Fuder”, que Kiko Dinucci escreveu especialmente para ela. Mentalmente dava para imaginar Elza dando as suas inesquecíveis quebradinhas e se imaginar dançando pelo espaço.

Ela finaliza cantando uma cantiga que faz menção à mãe e as cortinas se fecham. Mas no folheto do show indica que ainda faltam duas músicas, “Sim” (Cacá Machado/ Clima) e “Pressentimento” (Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho), e Elza volta ao palco dando a canja aos fãs. “Um pouquinho mais?”, dizia ela cheia de ginga, que era respondida pelo público.

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Rômulo declama Metade Pássaro, poesia de Murilo Mendes, que aborda mais uma vez o fim do mundo. Nos últimos momentos, grande parte da plateia estava com os olhos lacrimejando, dançando em pé e aplaudindo calorosamente o espetáculo. Segundo Elza, o fim do mundo é só o começo (veja só, é o primeiro disco só de inéditas de uma carreira de 50 anos) e adiantou que vários projetos ainda estão por vir. Ainda bem.

 

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