Sobre a intolerância dentro do teatro feito por pessoas brancas (por Bruno Laiso Felix)

Há pouco mais de 3 anos, sendo estudante de teatro, e frequentando semanalmente salas de teatro em São Paulo, venho me deparando com uma realidade que me incomoda cada dia mais: um teatro feito por gente branca, para gente branca, num país de gente preta.

Por Bruno Laiso Felix, do Dente di Leão 

Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira se declara negra ou parda, contudo, nesse texto não pretendo me valer dos argumentos a partir de estatísticas, porque elas estão aí para quem quiser se informar, e já sabemos bem da realidade do negro no Brasil.

No final do ano passado, assisti ao resultado de um processo seletivo da SP Escola de Teatro, onde dentre 24 aprovados para o curso de atuação, havia apenas uma moça afrodescendente. Questionei a escola e me disseram que não há racismo na instituição, que utilizam vários critérios, e a raça dos candidatos não é uma delas. Ok. Mais uma turma de atores brancos sendo formados numa instituição pública, para discutir várias questões, e quem sabe raciais, mas sob a ótica e execução de pessoas brancas, “tá certo, tá certinho”! Ontem fui assistir uma grande peça do cenário “alternativo”, “underground”, “lado B”,  de São Paulo, feita por aproximadamente 10 atores brancos, e nenhum negro. Até aí, tudo bem, foi apenas mais uma dentre tantas que vejo mensalmente.

Hoje, porém, foi a gota d’água.

Ao ler a declaração no facebook do Chico Carvalho, um ator que até então eu admirava muito, ao ver sua atuação em “Ricardo III” há 2 anos no teatro João Caetano, ele disse: “Está aí a prova de que a babaquice generalizada em forma de ressentimento acumulado vence mais uma vez. Vão fazer seminários, palestras, debates, simpósios ou o que seja sobre o que quer que seja, mas deixem em paz o campo simbólico da expressão.” Ele se refere à mudança da programação da MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), sobre a peça “Exhibit B” do artista sul africano Brett Bailey. O espetáculo sofreu ameaça de boicote por parte do movimento negro que disse não ver coerência em um espetáculo que reproduz as formas de torturas sofridas pelos seus ancestrais. Cedendo às pressões, a curadoria da mostra optou pela exibição da ópera “Macbeth” – trabalho do artista sobre a escravidão do Congo. Chico Carvalho termina sua declaração dizendo: “Debaixo desse valoroso pretexto de se buscar ‘um mundo melhor’, todos os Nelson Rodrigues vão pelo ralo (TODOS), e junto com ele o Plínio Marcos, Shakespeare, Molière, Aristófanes… e até sobrar ‘O Rapto das Cebolinhas’ para você levar a sua filha tranquilamente ao teatro. Se bem que raptar cebolinhas é um atentado contra o meio ambiente…”

Ao ler esta infeliz declaração, respondi para Chico Carvalho, em sua conta no facebook:

“Chico Carvalho, o que você (homem branco do teatro) chama de babaquice generalizada, eu chamo posicionamento político/racial.
Nós negros, queremos sim um mundo melhor, um mundo onde nossas opiniões sejam ouvidas, e muito me “admira” ver um posicionamento desses vindo de uma pessoa com uma experiência considerável no meio artístico.
Eu como um jovem ator negro, e antes disso, como um cidadão negro brasileiro, te peço para medir as suas palavras quando for falar das reivindicações dos movimentos negros deste país, que só existem porque fomos escravizados por 400 anos, e sofremos esse dano até hoje. Então vamos com calma, tente pensar além de sua referência acadêmica, que foi constituída quase 100% por homens brancos. Olhe um pouco para o país que vive e que faz teatro.
Falando nisso, o teatro é um dos lugares onde ainda se reproduz muito racismo, caso tenha dúvida, observe quantos atores negros vemos em cena, exceto o Teatro Oficina Uzyna Uzona, entre outros poucos grupos, fazemos um teatro de gente branca, para gente branca, ainda em 2016.”

O que está em questão nesse texto não é a legitimidade do trabalho do Brett Bailey, se a peça é ou não racista – não estou entrando no mérito desta discussão, mas sim sobre a audácia e desrespeito dos artistas brancos, quando vão se posicionar sobre as questões do movimento negro deste país. Estamos cansados da imposição desta gente branca que faz teatro, estuda as questões sociais, discute de tudo, mas ainda não conseguem olhar com o devido respeito para o lugar do negro no Brasil.

Meça suas palavras, parça! Que já foi o tempo em que aceitávamos fazer papéis subalternos no teatro, tv e cinema, e estava tudo bem. Não! Não está tudo bem, embora esteja para vocês (artistas brancos), nós negros, estamos em formação, para conquistar um espaço que vocês não querem abrir mão!

Queremos ver gente negra no palco, queremos discutir o que achamos ou não racismo, queremos espaço nas escolas públicas (universidades e escolas de teatro), já que não temos condições de pagar mensalidades altas em escolas privadas, que não por acaso são ocupadas por um exército de gente branca.

Estamos chegando, e vamos falar do Brasil, pelo viés e representatividade que poucas vezes assistimos!

Artista branco, apenas saia com seu racismo daqui!

 

 

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