Dada minha atual fase da carreira, na qual permaneço na busca de um emprego mais estável, venho refletindo muito sobre todos esses processos de contratação que vêm ocorrendo. É frequente ouvir, principalmente de colegas de profissão mais experientes, o quanto de oportunidades estão disponíveis agora; que há muito não havia tantas contratações e editais para contração de profissionais com doutorado tanto para vagas temporárias quando efetivas. De fato, desde que terminei meu doutoramento em 2019, não houve nada parecido com o que está posto atualmente.
No entanto, venho pensado muito também sobre aspectos da formação do cientista e como esta é ainda uma carreira muito elitizada. Costumo dizer que esta é uma profissão que, historicamente, foi pensada por e para herdeiros. Penso também que é uma carreira pouco inclusiva, porque acaba privilegiando perfis muito específicos de profissionais, que não são muito diferentes do perfil masculino esperado para uma pessoa do sexo masculino aqui no ocidente. Não à toa, ao longo dos mais de 12 anos que decidi ser cientista, vi meus colegas homens garantindo mais rapidamente seus postos de trabalho como cientistas, enquanto as mulheres passaram mais tempo para conseguir suas vagas, se não mudaram de trajetória na carreira e não permaneceram na academia nem na ciência.
Tudo isso me fez pensar não só na minha linha de pesquisa principal, que é o estudo da diversidade e evolução de plantas, mas também a querer entender, com dados, o que poderia explicar essas minhas observações de vida. Por isso, iniciei meus estudos em questões sociais na ciência, mas mais especificamente, na composição das pessoas que estão praticando a ciência no país.
Esta semana me deparei com a divulgação de um estudo que identificou mecanismos diversos que impedem a implementação da reserva de 20% de vagas em concursos públicos para pessoas negras em cargos federais. A Lei nº 12.990 foi sancionada em 2014, mas mesmo assim, as autoras do estudo identificaram que das 46.300 vagas abertas em concursos nos últimos 10 anos, cerca de 10.000 não foram reservadas e nem preenchidas por candidatos negros. Este estudo pode ser acessado na íntegra nesta página.
Essa notícia chegou no mesmo momento que recebi uma convocação para passar pela banca de heteroidentificação racial de um concurso público que estou participando. Os números trazidos pelo estudo divulgado me fizeram pensar em outros aspectos que podem estar associados ao não preenchimento dessas vagas.
Como a questão de iniquidades na sociedade brasileira é composta por diferentes complexidades, numa interpretação interseccional, a chance de uma pessoa negra também ser de origem social de baixa renda é alta. Neste sentido, quando penso nos editais lançados para a minha área de atuação nos últimos cinco anos, o aspecto financeiro é mais um elemento dentro dos vários filtros sociais para que pessoas negras permaneçam na carreira acadêmica. Com poucas exceções, os concursos para seleção de professoras ou pesquisadoras têm uma taxa de inscrição, a qual varia entre R$90 e R$400. De forma geral, há diversas formas de pedido de isenção dessas taxas, tais como a comprovação de baixa renda com o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal ou cadastro da pessoa candidata no sistema nacional de doadores de medula óssea. São mecanismos interessantes, mas que na prática não são tão simples de serem utilizados. Tanto é que, ao menos nos concursos que já participei, poucas pessoas solicitam tal isenção.
Além da taxa da inscrição, que não é um valor baixo, para candidatar-se para uma vaga como professora e(ou) pesquisadora há várias etapas de seleção. Geralmente, a primeira fase é a realização de uma prova escrita, a qual é sempre eliminatória. Nessa etapa, geralmente é sorteado um tema e a pessoa candidata tem algumas horas para escrever sobre o assunto. Alguns editais permitem a consulta de materiais por algum tempo antes da realização da prova, algumas vezes com a possibilidade de permanecer com um rascunho durante a mesma. Essa fase é sempre presencial. Isso significa que a pessoa precisa se deslocar até a cidade da prova. Aqui, vemos mais um custo para a pessoa candidata com o deslocamento que, muitas vezes, é interestadual.
Dependendo do edital, há ainda fases de avaliação didática, de projeto de pesquisa e(ou) ainda da trajetória profissional, através de defesa de memorial da pessoa candidata. Todas essas etapas podem ser realizadas ao longo de dias seguidos, geralmente uma semana ou até duas semanas. Alguns editais deixam as etapas em datas diferentes. Nesse caso, a pessoa candidata precisa realizar o deslocamento ao local da prova por inúmeras vezes. É importante lembrar também que nesta conta entram os custos de hospedagem, para quem não tem alguma rede de apoio na cidade do concurso, mais alimentação e custos com eventualidades. Outro ponto muito importante é que, em muitos casos, as datas exatas das diferentes fases não são informadas no edital e, não é pouco frequente, que as pessoas candidatas recebam a convocação para a realização da prova com poucas semanas ou até dias antes do concurso. À medida que a pessoa candidata avança nas fases do concurso, maior o custo para ela. Se você leu até aqui, fica muito claro um mecanismo de seleção, antes da seleção em si: a assunção da disponibilidade financeira da pessoa candidata.
Sabe aquela inferência, na qual a chance de uma pessoa negra do Brasil ser também de classe social baixa? Esse elemento aparece aqui de forma muito explícita. Esse é o meu caso e de inúmeras pessoas que, por diversos motivos similares ou não, permaneceram na vida acadêmica e pretendem atuar em alguma Instituições de Ensino Superior ou Instituto de Pesquisa no Brasil. A carreira acadêmica tem esse perfil definido como elitizado. Sim, assusta, mas pessoas como nós, de origem social pobre e não brancas já somos profissionais extremamente qualificadas e já compomos a elite intelectual brasileira. Por isso, por ser uma carreira que representa uma elite historicamente, ela permite uma mobilidade social marcante para nós. No entanto, nossos salários, que são viabilizados em forma de bolsas de estudos ao longo de nossos mestrados, doutorados e(ou) pós-doutorados, são, principalmente para aqueles em cidades maiores e mais caras, o suficiente apenas para nossas subsistências. Também, geralmente, os contratos para pessoas com doutorado são de curto prazo, variando entre meses, um ano ou, menos frequentemente, poucos anos. Isso faz com que precisemos parar nossas pesquisas para buscar o próximo contrato com mais frequência do que gostaríamos, já que essa é a forma de custeamos nossas vidas. Assim, é um desafio a realização de investimentos financeiros e de vida a qualquer prazo. Neste sentido, como é que nós podemos nos candidatar para as tantas oportunidades de emprego que têm surgido nos últimos tempos?
Há inúmeras outras questões importantes para serem consideradas nos editais, mas aqui trago uma reflexão específica, no lugar de uma mulher negra com origem social pobre. Para pessoas com trajetórias similares a minha, que são muitas inclusive, se candidatar para um concurso é caro. Além de ser caro financeiramente, é caro psicologicamente. Claro, isso acontece para todas as pessoas que se candidatam. A diferença é que algumas têm menos mecanismos que as impedem de participar dos concursos. Aqui que gostaria de colocar o ponto de discordância parcial das pessoas que chamam essas vagas aberta de oportunidades. Isso porque elas não são oportunidades de verdade para todas as pessoas que estão capacitadas para se candidatarem.
Para quem passou por um doutorado sabe que não é uma trajetória fácil. Portanto, parto do pressuposto que todas as pessoas candidatas estão igualmente qualificadas para ocuparem uma vaga como professora e(ou) pesquisadora no Brasil. Então como é que essas pessoas serão avaliadas? Para uma pessoa com uma trajetória similar a minha, além das avaliações explicitadas nos editais, parece haver também uma avaliação implícita do quão determinada a pessoa é, mesmo que não esteja escrito isso no edital. Claro, se pensarmos bem, também está em avaliação se essa pessoa é capaz de custear o processo seletivo inteiro, mesmo não presente no edital.
Agora, quando pensamos em pessoas que estão se candidatando a vagas para pessoas negras, além de tudo que mencionei anteriormente, incluindo os mecanismos pré-concurso sinalizado pelo estudo divulgado essa semana, os custos são ainda maiores. Dos concursos nos quais cheguei na etapa de passar pela banca de heteroidentificação, a qual verificada se meu fenótipo está de acordo com minha autodeclaração, alguns convocam a pessoa candidata para o procedimento presencialmente. Isso significa que, se este não for em data próxima das outras etapas presenciais do concurso, que geralmente não é, a pessoa precisa comparecer mais uma vez na cidade sede da seleção. Desta forma, ao contrário do que seria esperado dada as complexidades de ser uma pessoa negra no Brasil, o concurso pode ficar muito mais caro para uma pessoa candidata que se autodeclara negra. Essas convocações presenciais para heteroidentificação criam mais uma barreira para o uso de uma política pública tão importante que é o direito ao sistema de cotas raciais.
Ressalto aqui que a existência de bancas de heteroidentificação racial são crucial para efetivar a política pública vigente. O ponto aqui não é a existência dessas bancas, mas sim o estabelecimento de critérios potencialmente impeditivos para que nos candidatemos aos concursos públicos.
Tudo isso me fez refletir se dentro dessas quase 10.000 vagas não preenchidas por pessoas negras em concursos federais também há por um motivo muito mais básico: a indisponibilidade financeira dessas pessoas potencialmente candidatas. Neste sentido, os concursos que vêm ocorrendo representam oportunidades para quem? Como é que as iniquidades dentro do sistema vão ser vencidas com um cenário como este? Por isso, qualificar essas vagas como oportunidades acaba sendo uma falácia.
Isso é muito injusto, principalmente dadas as medidas meritocráticas que são utilizadas para avaliação das pessoas cientistas no Brasil. Não é possível comparar trajetórias tão diferentes com números de produção bibliográfica e qualquer outra forma de atuar, porque as pessoas não estão partindo do mesmo lugar nesta corrida pela tão desejada oportunidade de fazer ciência no país. Não é possível comparar trajetórias de pessoas de origem social tão diferentes; que têm parte do seu tempo envolvido com o cuidado de outras pessoas no contexto parental ou não; que precisam investir muitas horas com frequência para uma nova tentativa de contratação efetiva ou não, pois sem isso não terão como custear sua subsistência em caso de falta da próxima bolsa/contrato. Por isso, é urgente a necessidade de revisar, honestamente, as formas de selecionar cientistas no Brasil, principalmente para cargos com maior estabilidade. Se realmente desejamos uma sociedade mais diversa e inclusiva, é necessário que aquelas pessoas envolvidas nas preparações de editais invistam tempo para os fazerem de forma mais justa. Isso me motivou a responder a uma das pessoas de uma banca avaliadora de um dos muitos concursos que já fiz. Ela me disse que ficarei muito cansada e sobrecarregada atuando como professora/pesquisadora na minha área de atuação da botânica e de questões sociais na ciência. Como a disse, já estamos exaustas e sobrecarregadas há muito tempo. Se toda pessoa que já está no sistema pensar de forma mais ativa nessas questões, a sobrecarga é dividida e as pessoas que ainda não têm seu emprego mais estável ficariam menos cansadas também.
Esse deve ser um processo de mudança coletivo e ativo e, portanto, é cansativo. Este deve ser real, não somente para constar nos documentos a existência de políticas voltadas para diversidade e inclusão. Já houve muitas mudanças e avanços. São muitos desafios, reconheço, mas até quando essas discussões permanecerão na superfície entre nossos pares? Quando será que poderemos chamar essas vagas realmente de oportunidades? Como sempre digo para os colegas em fases mais iniciais da carreira, espero genuinamente que seja antes que chegue a horas delas tentarem suas vagas de emprego; que sejam oportunidades de verdade para as pessoas que estão chegando; que elas considerem mudar de carreira pelo exclusivo motivo de desejarem isso, não por verem que parece não pertencer. Realmente desejo que a frase do famoso rapper “tudo que nóis têm é nóis” deixe de fazer sentido e que as responsabilidades de garantir o acesso equânime às vagas acadêmicas sejam verdadeiramente compartilhadas.
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