A violência eufemismada de jornalismo: ‘Paulo Sérgio, estuprador’

Em vídeo postado recentemente no YouTube, a repórter Mirella Cunha, do Brasil Urgente Bahia, ataca um garoto negro preso por furto e acusado de estupro. Quando ele diz que não houve estupro, a repórter não pergunta, mas afirma e acusa: “não estuprou, mas queria estuprar”. O garoto, negro e desdentado, machucado por ter sido agredido pelos dois homens que o prenderam – o que a repórter em momento algum chega a questionar – garante que a polícia pode fazer os exames necessários e comprovará que não houve estupro. A partir daí, a repórter passa cerca de dois minutos não fazendo nada mais do que debochar do fato de o acusado não saber o nome do exame a que deveria submeter-se. Debocha, inclusive, quando ele cita “exame de próstata” como o que deveria ser feito. Ela insiste, sorri, dá risada e continua pedindo que ele diga o nome do exame. Enquanto isso, a legenda chama de “chororô” a alegação de inocência.

A análise da conjuntura geral da mídia brasileira, somada aos preceitos constitucionais e aos direitos universais da humanidade é a forma mais completa e complexa de demonstrar a necessidade absoluta de regulação da mídia brasileira, partindo-se de um novo marco para a comunicação no país. Mesmo assim, alguns exemplos tornam mais palpável essa necessidade. Se muitos deles partem de temáticas político-institucionais, alguns surgem da “base”, em notícias relacionadas ao cotidiano de pessoas que a classe média brasileira insiste em não enxergar.

O programa Brasil Urgente é recheado desses exemplos. Ocupando os finais de tarde na Band, esse programa é dedicado, basicamente, à cobertura policial. Afora o fato de que esse tipo de programação reforça e alimenta a violência de que, por sua vez, também sobrevive, a forma pela qual as notícias são abordadas é um deboche à inteligência do povo brasileiro e às instituições democráticas que pretendem defender o respeito a preceitos básicos de qualquer democracia, como a presunção de inocência. Que respeito uma emissora que veicula um programa como esse demonstra ter pela população brasileira?

O que temos ali, além de preconceito, covardia e desumanidade, é tortura. Mirella tortura o acusado durante três minutos. Tortura verbal, não física, mas não menos humilhante. É a espetacularização da notícia, o circo dos horrores em rede nacional. Nada de notícia, nada de informação, nada de prestação de serviços, nada de interesse público.

Criminalização da pobreza, preconceito social – ou racial, como escreveu Cristóvão Feil –, homofobia e desconstrução das políticas públicas de saúde preventiva – nas piadas sobre o “exame de próstata” -, acusação sem provas, ridicularização da imagem privada. De tudo isso pode-se acusar Mirella, e está tudo ali, no vídeo. Tudo isso é motivo mais do que suficiente para que seu registro de jornalista – caso tenha um – seja cassado, assim como é motivo para que o programa da Band seja imediatamente retirado do ar – até porque está longe de ser a primeira vez em que situações desse tipo são provocadas pelo Brasil Urgente em todo o país.

O “mercado” não irá regular esse tipo de barbaridade – no sentido último do termo, de ação de barbárie – e um espaço público, como uma concessão de televisão, não pode ser usado dessa forma. É, portanto, o governo federal e o Poder Legislativo quem têm o dever de impedir que essa bestificação da população brasileira – tanto da audiência quanto dos “personagens” envolvidos nas reportagens – tenha continuidade. Tudo isso foi feito utilizando-se de uma concessão pública, ou seja, o poder público brasileiro assina embaixo de tudo o que a “repórter” colocou, assim como assinam embaixo a Band, seus diretores de jornalismo e todos os patrocinadores do Brasil Urgente. São estes os responsáveis por essa violência eufemismada de jornalismo.

 

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Fonte: Jornalismo B

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