‘Assunto mais importante do Brasil é racismo’, diz Jorge Furtado ao lançar filme ‘Rasga coração’

Diretor lembrou que fez 12 filmes com protagonistas negros. Novo longa adapta peça de Vianinha e retrata conflitos políticos e de geração com atores negros em papéis de destaque.

por Cauê Muraro no G1

Foto- Fabio Rebelo:Divulgação:Globo Filmes

Um ator negro e uma atriz negra fazem dois dos personagens de destaque de “Rasga coração”, que adapta a peça homônima escrita no início dos anos 1970 por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha. É de propósito, explica o diretor do filme, Jorge Furtado.

“Já me perguntaram por que os dois são negros. Eu respondi que, na peça, não se diz a cor deles, não está escrito que são brancos”, afirmou o cineasta, que participou nesta terça-feira (4) de um evento em São Paulo para lançar o longa.

Chay Suede, Marco Ricca e Drica Moraes também participaram da pré-estreia para a imprensa. Os temas são conflitos políticos e geracionais, mas Furtado aproveitou para falar também sobre suas opções de elenco.

“Acho que o assunto mais importante e urgente do Brasil é o racismo. O Brasil é o país dos escravos. O Joaquim Nabuco dizia que a escravidão permanecerá por muito tempo como a marca da identidade nacional brasileira”, comentou o diretor.

“Esse assunto é pouco falado, na minha opinião. Já fiz 12 filmes com protagonistas negros”, enumerou, citando do curta “O dia em que Dorival encarou o guarda” (1986) à série “Mister Brau”, exibida desde 2015 pela Globo, passando pelos filmes “O homem que copiava” (2003) e “Meu tio matou um cara” (2004).

“É uma questão política importante, e me preocupo bastante com isso.”

Perguntado por que justamente os negros de “Rasga coração” é que “pagam o pato”, o cineasta justificou: “Porque, de cada dez pessoas mortas pela política do Rio de Janeiro, nove são negros. Porque o Brasil é um país que nunca se livrou da escravidão.”

“Os negros e as mulheres são a maioria, mas são minoria nos papéis de protagonistas, na publicidade, nos anúncios. É uma questão fortemente política. Os EUA têm 13% de negros e tem muito mais representação em todas as áreas do que o Brasil, que tem 52%.”

De acordo com ele, a proposta com a série “Mister Brau”, estrelada por Thaís Araújo e Lázaro Ramos, era mostrar negros “empoderados, ricos e talentosos para que as crianças negras possam ver esses personagens e criar no imaginário heróis negros”.

“Tenho a convicção de que, se nós tivermos a chance de avançar de novo, depois deste retrocesso que possivelmente possa vir, é através das mulheres – e das mulheres negras, especialmente.”

A história do filme (e da peça)

“Rasga coração” passa-se em dois tempos: 1979 e 2013.

No primeiro, vemos o jovem Manguari Pistolão (vivido por João Pedro Zappa) na pele de um militante contra a ditatura militar. Seu melhor amigo é o artista provocador Lorde Bundinha (George Sauma). Seu maior rival, o próprio pai (Nelson Diniz), que acha o filho, basicamente, um “vagabundo” que só quer saber de greve”.

Na época contemporânea, Manguari é um funcionário público de meia-idade (agora interpretado por Marco Ricca) que vive um casamento acomodado com a dona de casa Nena (Driga Moraes), a namoradinha de juventude. A juventude é representada pelo filho do casal, Luca (Chay Suede). O garoto gosta de usar saia, pintar as unhas e passar maquiagem. Tem uma namorada, Mil (Luisa Arraes), que “veste roupa de menino”.

O original também tinha conflito de gerações, mas entre um pai da década de 1950 e um filho hippie e meio alienado da de 1970. Com o título emprestado de uma canção de Anacleto de Medeiros, “Rasga coração” é a última peça de Vianinha, que a concluiu em 1974, já debilitado por um câncer no pulmão.

O autor nunca chegou a vê-la no teatro. Após anos de censura, o texto foi finalmente levado aos palcos em 1979 e marcou época. Dentre os atores, estavam Vera Holtz e Raul Cortez (1932-2006).

“Quis há dez anos em fazer a peça, mas eu pensei: ‘Não faz o menor sentido, com um governo de esquerda, dando certo. Mas, em 2013, falei: ‘A peça está ficando atual de novo, os jovens na rua’”, lembra Jorge Furtado.

De acordo com ele, a abordagem dos papéis femininos são uma das poucas diferenças com relação ao texto original. “Fomos a algumas ocupações, e as mulheres é que dominavam, mandavam, na maioria dos grupos. Já os dois personagens originais da peça são duas mulheres alienadas politicamente.”

‘Olhar político’ do Chay

O Luca do filme “Rasga coração” é politizado – bem diferente do Luca da peça. “A gente precisou ter um olhar um pouco mais político, por se tratar um jovem atual”, explicou Chay Suede.

“Talvez o Luca da peça fosse um pouco mais alienado politicamente por estar integrado ao movimento hippie, muito mais ligados às questões humanas que política.”

Para Chay, “um jovem de hoje que se propõe a ter um estilo de vida diferente – isso não tem só a ver com gênero, com sexualidade”.

“Tem a ver com comportamento, com poder pintar a unha ou usar uma saia. E esse jovem precisa ter contato com políticas. A gente precisou repensar esse jovem. Porque o jovem de hoje tem demandas muito maiores, mais volumosas, muito mais profundas do que de outras gerações. E o Luca não é da minha geração, eu sou mais velho: ele tem 17 anos e eu tenho 26”, diz Chay.

Jorge Furtado cita que Vianinha “era um comunista super coerente, um cara que se filiou no partido comunista aos 15 anos, morreu aos 38 e nunca andou de táxi”.

“Mas, ao mesmo tempo, era um cara super tolerante, trabalhava na Globo escrevendo ‘A grande família’, era amigo do Domingos de Oliveira, que ele chamava ‘meu amigo hippie’. Era um cara tolerante, humanista – o humanismo estava acima dessa ideologia.”

Para Marco Ricca, “Rasga coração” mostra “uma relação de amor, do casal com o filho, com a tentativa de projeção”. “Claro que tem um pano de fundo político, mas fiz o filme pensando que este é um homem que, de certa forma, teve frustrações, mas que estava colocando tijolinhos, tentando reconstruir.”

Já Furtado contou que seu tipo de cinema preferido “são as comédias tristes”. “Acho que é a melhor representação da vida. Porque a vida não é uma tragédia e também não é uma comédia”.

“A vida tem as duas coisas. O Ettore Scola é uma referência total, o Billy Wilder, o Fellini, o Chaplin, que dizia que sempre a piada tem de ter uma ponta de tristeza…”

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