Há 20 anos, Conceição Evaristo surgia para a literatura de uma forma surpreendente. A escritora mineira publicava, de maneira solo, com recursos próprios, sua primeira obra, o romance “Ponciá Vicêncio”, à época editado pela Mazza Edições, da resistente Maria Mazarello Rodrigues.
Obra seminal de sua importante carreira literária, hoje na terceira edição pela Pallas, “Ponciá Vicêncio” apareceu em um momento crucial das letras brasileiras. No primeiro plano, escritores e escritoras, negros e negras, faziam forte movimento de afirmação de suas vozes e de seus valores enquanto intelectuais e produtores artísticos.
Antes da publicação do seu romance, no final de 2003, Conceição Evaristo apareceu nas páginas de “Cadernos Negros”, do Grupo Quilombhoje, coletânea que reúne nomes da produção em poesia e prosa nacionais, como Oswaldo de Camargo, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Míriam Alves. Hoje, peças-chaves da literatura de autoria negra, como a premiada escritora Eliana Alves Cruz, já fizeram pouso nas páginas de “Cadernos Negros”, fundado há quatro décadas e meia por um grupo de jovens negros e negras, em busca de voo e autoestima.
Quando li “Ponciá Vicêncio“, pela primeira vez, senti aquilo que Conceição Evaristo chama literalmente de “engasgo”. Sou leitor desse engasgo, desse incômodo que essa literatura provoca, como uma lâmina afiada a talhar ao meio nossa língua, podando a nossa fala.
O romance narra a história de Ponciá, uma pobre moça, desde sua infância e até se tornar adulta. Não é uma história fácil de ser ingerida. Ponciá é uma remanescente quilombola, é uma artesã do barro e herdou o nome “Vicêncio” da família proprietária das terras. Todos os que nasceram, viveram e trabalharam no local, como seu avô, herdaram esse sobrenome, marca de um período colonial.
Estamos falando aqui do processo de escravidão, que consumiu mais de 350 anos de história do país. Estamos falando também de violência a corpos negros, de mulheres e homens, e também de crianças e velhos. Aliás, o envelhecimento precoce faz parte do processo humano de toda essa gente.
Conceição Evaristo, de forma excepcional, transpõe para as páginas do seu primeiro romance a saga não apenas de uma mulher, negra e pobre, mas de toda família brasileira oriunda do período escravista. Quando falamos em engasgo, obviamente, é porque não há meias palavras durante a narrativa —há incômodo, há feridas abertas, há dores latentes, há lágrimas e sangue.
O sujeito narrativo está na voz de Ponciá, que sai de sua terra natal, de trem, e vai para a cidade grande, onde vai viver na favela. As pegadas da mãe e do irmão não são diferentes quando falamos de processos de exclusão e violência de gênero e do racismo, que queimar, como ferro, em suas próprias peles.
“Ponciá Vicêncio” é um livro que traz as marcas da mão forte de uma escritora que é referência, a mais importante do país, a mais vendida e festejada. Mas ainda faltam muitos respeitos a Conceição Evaristo, sem dúvida –sobretudo como mulher e intelectual.
As regras de certo jogo são bem definidas no Brasil, onde os padrões de privilégio estão alinhados sempre dentro do pacto de branquitude e da hegemonia do poder, sobretudo econômico. O melhor exemplo disso foi a candidatura de Conceição Evaristo à Academia Brasileira de Letras, em 2018.
Não foi só a rejeição da candidatura de uma escritora negra e militante, mas a recusa de uma intelectual que só traria pluralidade para a casa fundada por Machado de Assis, um dos maiores escritores negros do país.
Em março de 2004, publiquei um artigo sobre o romance de estreia de Conceição Evaristo para um jornal do Rio de Janeiro. Talvez tenha sido o primeiro a comentar o livro da escritora mineira. Na ocasião, o artigo passou despercebido, talvez por ela própria. Hoje, depois de 20 anos, vejo o quanto aquele primeiro olhar, sobre uma obra ainda em percepção do público, me traz a certeza de que eu fiz a coisa certa.
Chamei a obra de “boa safra literária”, comparando-a, em grandeza, à tragicidade de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e às personagens de Macabéa, de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, e, por fim, a Biela, de “Uma Vida em Segredo”, de Autran Dourado.
Hoje eu acrescentaria “Úrsula”, da maranhense Maria Firmina dos Reis, para trazer Conceição Evaristo, como ela merece, para o campo da genialidade da literatura brasileira.