Toni Morrison in Beloved
Contemporary newspaper reports, abolitionist material, and various biographical and autobiographical accounts provide the sources from which this episode can be reconstructed. (…) Trapped in his house by the encircling slave catchers, Margaret Garner killed her three-year-old daughter with a butcher’s knife and attempted to kill the other children rather than let them be taken back to into slavery by their master, Archibald K. Gaines, the owner of Margaret’s husband and of the plantation adjacent to her own home.
Paul Gilroy in The Black Atlantic
Colin Murray Parkes em Luto – Estudos sobre a perda na vida adulta
INTRODUÇÃO
O romance Ponciá Vicêncio de autoria de Conceição Evaristo presta-se a uma miríade de leituras. Da história da vida da protagonista – cujo nome dá título à obra – compõe-se a matéria essencial da narrativa: sua infância, seus sonhos, suas andanças, seus encontros e desencontros. A busca da identidade perdida, uma característica da literatura produzida na Afro-América, também é discutida no livro assim como as relações dialéticas entre passado e presente, lembrança e vivência, real e imaginário. Outros temas tratados com profundidade e pungência são as sucessivas perdas (mortes na família, abortos, etc) sofridas por Ponciá ao longo de sua vida. Entretanto, o olhar crítico de Conceição Evaristo vê tais questões não apenas a partir de uma perspectiva subjetiva e emocional mas igualmente considera fatores sociais tais como miséria, abandono e desigualdade.
Obviamente extrapolando a relevância literária do texto per se, há que se louvar a contribuição para a luta dos direitos humanos. Em artigo publicado no Jornal do Brasil em 20 de novembro de 2004 , Cláudia Nina, professora visitante da UERJ, elabora a seguinte argumentação sobre Conceição Evaristo; vale registro o início do parágrafo porque, embora trate-se de outra escritora, o comentário está intrinsecamente ligado ao nosso objetivo de salientar o alcance da obra em questão para além da literatura, na medida que contribui oportunamente para ampliar e aprofundar as discussões de pesquisadores de diversas áreas, como os Estudos Culturais, a História e a Sociologia.
“No caso de Alice Walker e de tantas outras escritoras afro-americanas, a literatura fala de mulheres sempre muito oprimidas, mas não vencidas, e toca em temas recorrentes como o amor, amantes, aborto, memória e raça. No caso da brasileira, lutas semelhantes se renovam no contexto literário, e o tema da maternidade é bastante freqüente. A figura da mãe, suas preocupações – tantas vezes à distância – com os filhos, diante de um pano de fundo totalmente desagregado e em flagrante antagonismo com o senso de humanidade ou de uma sociedade justa com que se possa sonhar. Os efeitos de raça, gênero e classe se fazem evidentes na interpretação desses temas. Os elementos criativos, afirmativos e subversivos expressos em sua obra são formas de resistência, destinadas a combater o racismo e o sexismo”.
Apesar do incontestável mérito desta faceta do fazer literário, propomos que a questão seja ponderada e repensada com o intuito de escaparmos das armadilhas de uma análise reducionista. Para orientar nossa aparentemente contraditória reflexão, façamos uso das sábias palavras do mestre Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental:
A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir, mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais. A repercussão imediata dos acontecimentos políticos na literatura não vai muito além da superfície, e quanto aos efeitos da situação social dos escritores sobre a sua atividade literária, será preciso distinguir nitidamente entre as classes da sociedade e as correspondentes ‘classes literárias’. A relação entre literatura e sociedade não é mera dependência: é uma relação complicada, de dependência recíproca e interdependência dos fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e dos fatores materiais (estrutura social e econômica).
À luz desta premissa, o presente estudo objetiva abordar o páthos no romance Ponciá Vicêncio, fixando mais atentamente o olhar na questão da morte e da dor, propondo um diálogo mais ousado e mais sutil entre a História, a Sociologia, a Psicologia e a obra literária. Alfredo Bosi, em seu extraordinário livro Literatura e Resistência, parafraseando Gustave Lanson, oferece-nos interessantes elementos teóricos que ajudam a iluminar a proposta de trilhar caminhos menos marcados por obviedades:
Lanson insiste no caráter singular das obras de arte e na necessidade de entender a individualidade irredutível de cada autor e de cada texto para conjurar o risco de submergi-lo na história dos costumes ou na história das idéias. (…) Em literatura, como na arte, não se podem perder de vista as obras, infinita e indefinidamente receptivas e cujo conteúdo ninguém jamais pode afirmar ter esgotado nem fixado em fórmulas. (p. 8)
Nesta seara, debruçar-nos-emos sobre o romance em questão já com o olhar mais ampliado e sensibilizado, em uma tentativa de deslindar algumas de suas verdades internas, materializadas através da linguagem, sua matéria prima por excelência. À guisa de conclusão desta breve introdução, façamos uso das palavras do sagaz pensador e crítico Antonio Candido:
Se a História representa o desejo verdade, o romance representa o desejo da efabulação, com a sua própria verdade.
LINGUAGEM E ASPECTOS ESTILÍSTICOS
A escrita de Conceição Evaristo é poética, bem construída e possui uma densidade própria observável no tratamento cuidadoso que emana das estruturas profundas de seu texto. Ponciá Vicêncio apresenta uma narrativa visceral, altamente impactante, caracterizada por exercícios hermenêuticos muito bem elaborados e por incursões ontológicas que possibilitam ao leitor percorrer os meandros da memória da protagonista, compartilhando seus processos físicos e psicológicos de aprendizado. A memória serve de instrumento de auto-conhecimento para Ponciá Vicêncio e também funciona como via de acesso para o leitor penetrar em seu foro íntimo, ontologicamente compreendido aqui como seu (do leitor) e seu (da personagem central).
Do ponto de vista da técnica narrativa, há um cariz ligeiramente subversivo uma vez que as personagens – e outros elementos constitutivos da narrativa, como tempo e espaço – não são apresentados convencionalmente; vão se conjugando e fazendo sentido na medida que o processo de leitura avança.
A professora Maria José Somerlate Barbosa (University of Iowa) assina o elucidativo prefácio no qual aponta questões formais e temáticas na construção do romance de Conceição Evaristo, fazendo uma rica análise e um vibrante elogio da obra. Atente para o seguinte trecho:
A repetição intencional de certas frases tem o efeito de ligar os fatos, de conectar passado e presente e de enfatizar certas facetas do mundo interior das personagens. As diversas partes do texto (cada uma enfocando um dos personagens) vão se intercalando, como peças de um jogo ou de um quebra-cabeça. As frases curtas, quase secas, o uso de poucos adjetivos e de poucas conjunções aditivas contrastam claramente com a quantidade de emoções e de sentimentos que escorrem pelas entrelinhas. (p. 5)
Observemos agora na obra um fragmento que abarca algumas das observações da estudiosa:
Naquela época Ponciá Vicêncio gostava de ser menina. Gostava de ser ela própria. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho ainda no pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. O tempo corria também. Ela nem via. O vento soprava no milharal, as bonecas dobravam até o chão. Ponciá Vicêncio ria. Tudo era tão bom. (p. 9-10)
Notadamente o contraste entre a secura da linguagem utilizada e o turbilhão de complexos sentimentos no qual as personagens estão inseridas é um dos aspectos mais percucientes do texto de Conceição Evaristo. Também há que se ressaltar a ausência de maniqueísmos e a lúcida capacidade da autora de relativizar temáticas delicadíssimas como, por exemplo, a violência doméstica, para mencionar apenas uma. A combinação destes elementos estilísticos empresta à obra uma densidade e uma pungência ímpares na medida que convida o leitor a deslindar as várias camadas de significação que compõem sua complexa malha ficcional.
A este respeito, façamos mais uma vez uso das considerações da professora Maria José Somerlate Barbosa no prefácio ao qual já nos referimos:
Quase sempre este romance explora as complexidades das personagens. Raramente encontramos uma pessoa neste texto (mesmo as personagens periféricas) que possam ser categorizadas usando-se uma simplicidade dualística, ou seja, como seres meramente bons ou maus. Para cada personagem, Evaristo apresenta sempre mais de uma faceta, ou busca causas sociais, históricas e emocionais para explicar os comportamentos, fugindo sempre de conclusões apressadas. Por exemplo, ao descrever o relacionamento de Ponciá com seu marido, jamais a descreve como uma heroína trágica ou o marido como um vilão. Ainda que Evaristo retrate com pinceladas bem reais o comportamento violento do marido, também busca explicar as razões que o levam a proceder assim. Mesmo que tal explicação não seja uma justificativa para os seus atos, serve para mostrar que ele também é uma vítima do sistema social. (p. 6-7)
O seguinte trecho do romance analisado é particularmente revelador dos elementos acima discutidos, deixando entrever as questões da busca identitária, da alteridade e de como essas forças se relacionam com o mundo exterior:
O homem de Ponciá acabava de entrar em casa e viu a mulher distraída na janela. Olhou para ela com ódio. A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. Falava pouco e quando falava, às vezes, dizia coisas que ele não entendia. Ele perguntava e quando a resposta vinha, na maioria das vezes, complicava mais ainda o desejado diálogo dos dois. Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele, espantado, perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chamá-la de nada.
O homem de Ponciá estava cansado. Sua roupa empoeirada, assim como o seu corpo, porejava pó. Ele e outros estavam pondo uma casa, antiga construção, abaixo. Tarefa difícil, cada hora era um que pegava na marreta e golpeava as paredes que resistiam. Ele se lembrava, a cada esforço, do barraco onde moravam e que flutuava ao vento. Ao ver a mulher tão alheia, teve desejos de trazê-la ao mundo à força. Deu-lhe um violento soco nas costas, gritando-lhe pelo nome. Ela lhe devolveu um olhar de ódio. Pensou em sair dali, ir para o lado de fora, passar por debaixo de arco-íris e virar logo homem. Levantou-se, porém, amargurada de seu cantinho e foi preparar a janta dele. (p. 16-17)
A TRAJETÓRIA DA DOR
Apesar do aparente paradoxo, a temática da dor será inicialmente abordada a partir de um ensaio da professora e escritora americana Bell Hooks intitulado Vivendo de Amor, publicado no Livro da Saúde das Mulheres Negras – Nossos Passos Vêm de Longe.
Sem pieguice, com seriedade e vasto embasamento teórico, dialogando com a História, a Sociologia e a Literatura; Bell Hooks compõe um interessantíssimo e esclarecedor quadro sobre uma questão nevrálgica – e pouco estudada – para a população negra: nossas dificuldades de lidar com a expressão e a manifestação amorosas.
Partindo de um conceito de M. Scott Peck que define o amor como “a vontade de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa”, sendo ao mesmo tempo “uma intenção e uma ação”, a ensaísta pondera:
Se considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como amantes. O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. (p. 188)
Embora a análise refira-se aos Estados Unidos, é cabível afirmar que reflita também a realidade brasileira. Em nossa sociedade, a vida dos afro-descendentes é marcada por questões políticas, sociais e psicológicas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses processos de dominação são cruelmente eficientes, pois afetam nossa capacidade de nos expressarmos amorosamente.
A escravidão foi extremamente impactante nesse processo de endurecimento. Dolorosas lições foram aprendidas por nossos ancestrais ao presenciarem seus rebentos sendo negociados e seus amantes e amigos sofrendo inomináveis e injustificáveis violências. Fechando um círculo vicioso de abuso e brutalidade, as marcas são observáveis – e sentidas – até hoje:
Imagino que, após o término da escravidão, muitos negros estivessem ansiosos para experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão, fora dos limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos estivessem despreparados para praticar a arte de amar. Essa talvez seja a razão pela qual muitos negros estabeleceram relações familiares espelhadas na brutalidade que conheceram na época da escravidão. Seguindo o mesmo modelo hierárquico, criaram espaços domésticos onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram contra eles. (p. 189)
Na seqüência de seu estudo, a professora Bell Hooks discute a problemática da repressão das emoções como mecanismo de sobrevivência adotado pelos escravos. Para ilustrar sua tese, a escritora cita um documento datado de 1845 no qual Frederick Douglass relata sua incapacidade de se sensibilizar com o falecimento de sua progenitora por lhe ter sido negado o direito de conviver com ela. Os negros foram condicionados pela escravidão a refrear e dissimular muitas de suas emoções. Testemunhar e vivenciar o trabalho árduo, os castigos desumanos, a falta de alimentos e o medo aleijou sua capacidade de solidarizarem-se. Apenas em espaços de resistência cuidadosamente mantidos e momentos de extrema necessidade, ousavam demonstrar seus sentimentos represados.
Infelizmente, esse mecanismo foi interiorizado:
A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. (p. 190)
A ideologia foi tão cruel e eficazmente introjetada que afeta a saúde emocional de um número enorme de pessoas ainda hoje. Há que se implodir paradigmas que associam a expressão e a manifestação amorosas à tibieza de caráter, há que se questionar posturas que negam ao indivíduo direito e espaço para expressar sua dor e buscar consolo. A luta contra a opressão inclui criar condições para uma vida mais plena que atenda não apenas as necessidades materiais, mas as emocionais também. A literatura pode contribuir consideravelmente nessa trajetória na medida que pode despertar, inquietar e perturbar a calma aparente na medida que diz o indizível, provocando diálogo onde antes havia apenas condicionamento.
Visceralmente relacionado à História de nossa nação e estabelecendo um contundente diálogo com os temas centrais do ensaio da professora Bell Hooks, o texto de Conceição Evaristo salta da página, extrapolando funções tradicionalmente associadas à linguagem. Reprimida pela História, a dor explode livremente no texto literário, dando voz aos nossos ascendentes na figura das personagens e criando um espaço de convergência entre passado, presente e futuro representados – mas não exauridamente – pelas gerações passadas de afro-descendentes, pela autora (mulher negra) e pelos leitores. Brilhantemente concebido e elaborado com precisão, o trecho reproduzido a seguir é emblemático:
Quando o pai de Ponciá Vicêncio morreu, o susto dela, no momento, talvez tivesse sido maior que a dor. (…) Saíra de casa bem e se não fosse a ausência que sofria, embora nunca reclamasse, da mulher e da filha, poderia dizer que partira quase feliz. O pai de Ponciá não era dado a muitos risos, caladão, quieto, guardava para si os sentimentos. Quando menino, não. Apesar dos mandos do sinhozinho e da aparente obediência cega, que era obrigado a demonstrar, ele revelava as suas tristezas com imensas lágrimas, assim como gritava alto os seus risos. Entretanto, foi crescendo e aprendendo a disfarçar o que lá dentro vinha. Não chorava e também não guardava o riso. E o máximo que fazia, se descontente estava, era resmungar, mas tão baixinho e com os lábios tão cerrados, que os resmungos caíam para si próprio, numa discordância funda e nula.
E numa tarde clara, em que o sol cozinhava a terra e os homens trabalhavam na colheita, enquanto todos entoavam cantigas ritmadas com o movimento do corpo na função do trabalho, naquela tarde, o pai de Ponciá Vicêncio foi se curvando, se curvando ao ritmo da música, mas não colheu o fruto da terra, apenas à terra se deu. (p. 29-30)
O páthos inunda todas as páginas do romance de Conceição Evaristo. Apesar da seca ternura que une a família da protagonista, sua trajetória é marcada pela dor e pelo esfacelamento dos sonhos construídos durante sua infância relativamente feliz e minguadamente provida. A ingênua ignorância da menina vai cedendo espaço aos questionamentos da jovem adulta até submergir totalmente face às duras constatações da mulher. Seu aprendizado dá-se holisticamente através de todos os seus sentidos, aumentando e intensificando seu impacto e verdade psicológica.
Acompanhemos diferentes momentos de seu percurso nos fragmentos selecionados:
Nos tempos de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau-a-pique, de chão de barro batido, de bonecos de espigas de milho, de arco-íris feito cobra coral bebendo água no rio, a menina gostava de ser mulher, era feliz. A mãe nunca reclamava da ausência do homem. Vivia entretida cantando com as suas vasilhinhas de barro. Quando ele chegava, era ela quem determinava o que o homem faria em casa naqueles dias. (…) O pai era forte, o irmão quase um homem, a mãe mandava e eles obedeciam. Era tão bom ser mulher! Um dia também ela teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse e teria filhos também. (p. 24-25)
Ao se lembrar da mãe, sentiu um aperto no peito. O que acontecera com ela? Teria morrido? Precisava levantar algumas histórias do passado. Mas como? E o irmão? Vivera pouco com ele na infância, muito pouco, mas das raras vezes que se encontraram, gostavam tanto. Eram secos de carinhos explícitos; entretanto, mesmo sem se tocarem nem se abraçarem sequer, se amavam muito. Sabia que ele também saíra varando o mundo. Conseguira? Será que conseguira ir além? Ou estaria reduzido, pequeno, mesquinho, em um barraco qualquer, feito ela? Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio. (p. 22-23)
Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo dia. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova. E avançando sobre o futuro, Ponciá partiu no trem do outro dia, pois tão cedo a máquina não voltaria ao povoado. Nem tempo de se despedir do irmão teve. E agora, ali deitada de olhos arregalados, penetrados no nada, perguntava-se se valera a pena ter deixado a sua terra. O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor? Não eram somente sonhos, eram certezas! Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera contato com os seus. E agora feito morta-viva, vivia. (p. 32-33)
Uma análise parcial remeteria os fruidores da obra à termos como “realismo” e “realidade”. Para aprofundar o campo de visão e evitar a perspectiva reducionista de encarar a literatura como mero documento da vida real, propomos uma breve interlocução com Alfredo Bosi. Em sua já mencionada obra Literatura e Resistência, o brilhante crítico afirma que deve-se:
(…) detectar em certas obras, escritas independentemente de qualquer cultura política militante, uma tensão interna que as faz resistentes, enquanto escrita, e não só, ou não principalmente, enquanto tema. (p. 129)
Na seqüência do mesmo ensaio, a genialidade de Alfredo Bosi materializa-se nos seguintes comentários:
Chega um momento em que a tensão eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à escrita, o que torna o romance não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso ideológico do homem médio. O romance “imitaria” a vida, sim, mas qual vida? Aquela cujo sentido dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus hábitos cotidianos. A vida como objeto de busca e construção, e não a vida como encadeamento de tempos vazios e inertes. Caso essa pobre vida-morte deva ser tematizada, ela aparecerá como tal, degradada, sem a aura positiva com que as palavras “realismo” e “realidade” são usadas nos discursos que fazem a apologia conformista da “vida como ela é”… A escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra, sem retórica nem alarde ideológico, que essa “vida como ela é” é, quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida. (p. 130)
Parece-nos flagrante a relação com o romance Ponciá Vicêncio. A tensão interna na escrita de Conceição Evaristo; a paixão e a razão – forçaapas rentemente irreconciliáveis – amalgamadas na narrativa que retrata, mas não apenas, a vida de uma mulher constituem uma obra de arte singular e profundamente inquietante. Além destas qualidades, o que realmente salta da página, extrapolando os acontecimentos narrados propriamente ditos, é a discussão dos valores que cada experiência incita. O texto propõe aos leitores uma investigação e uma reflexão mais coerentes, profundas e densas sobre os valores humanos.
Ponciá Vicêncio representa um manancial de tais propostas. Cada página emociona, comove, instiga e perturba pela trágica beleza das experiências vividas pela personagem principal. Seu doloroso processo de busca de si mesma e de aprendizado desdobra-se em várias outras possibilidades de leitura dependendo do ponto de vista. Com o objetivo de ilustrar o excepcional alcance e relevância da obra selecionamos um tema que parece-nos assustadoramente atual: a dificuldade de comunicação e a questão da alteridade. Abaixo, uma das passagens mais comoventes do romance; não apenas pela temática propriamente dita mas também pelo cariz tragicamente poético da prosa:
Ponciá Vicêncio achava que os homens falavam pouco. O pai e o irmão haviam sido exemplos do estado da quase mudez dos homens no espaço doméstico. Agora, aquele, o dela, ali calado, confirmava tudo. Ele também só falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem menos do que a precisão dela. (…) Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grávida. (…) Quis saber se ele também sofria do mal do medo, se ele vivia também agonias. Quis que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos, das esperanças que ele depositava na vida. Mas ele era quase mudo. Não chorava, não ria. Desde os primeiros tempos, nos momentos em que ela se abria para ele, o homem vinha emudecido, trancado de falas, sem gesto algum dizível de nada. Enquanto que Ponciá vivia a ânsia do prazer e o desesperado desejo de encontro. E, então, um misto de raiva e desaponto tomava conta dela, ao perceber que ela e ele nunca iam além do corpo, não se tocavam para além da pele. (p. 67)
A aridez do relacionamento é acentuada pela morte prematura dos bebês do casal. A dor da perda é tornada árida pelas indagações que as condições desfavoráveis de sobrevivência suscitam:
Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras perdas ela sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a pena pôr um filho no mundo? (…) Crescera na pobreza. Os pais, os avós, os bisavós sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. (p. 82)
Da África onde nossos ancestrais foram capturados e negociados até o Brasil de nossos dias, a trajetória da dor foi sendo transformada pela História. Apesar do poder destrutivo da ideologia que deixou e deixa heranças de incompreensão e ódio, há vozes dissonantes proclamando a importância do diálogo mais solidário, mais cuidadoso e mais agregador. Conceição Evaristo é uma destas vozes. Ao contar a história de uma mulher negra e pobre, transformando-a em personagem principal de seu romance, a autora já está subvertendo a ordem estabelecida. Na verdade, este processo de subversão é duplamente louvável pois dá-se em dois níveis: na mera concepção da personagem e na sua complexa construção.
SUICÍDIO E MORTE
Além de ser um tema recorrente na literatura, o suicídio tem fascinado e perturbado filósofos e sociólogos durante séculos dada, mas não exclusivamente, a dificuldade em conceituá-lo. Em sua dissertação de Mestrado em Psicologia Social , Marcimedes Martins da Silva elenca as seguintes definições:
O suicídio é…
“… um ato de heroísmo”. (Sêneca)
“… um ato próprio da natureza humana e, em cada época, precisa ser repensado”. (Goethe)
“… a destruição arbitrária e premeditada que o homem faz da sua natureza animal”. (Kant)
“… uma violação ao dever de ser útil ao próprio homem e aos outros”. (Rosseau)
“… admitir a morte no tempo certo e com liberdade”. (Nietzsche)
“… uma fuga ou um fracasso”. (Sartre)
“… a positivação máxima da vontade humana”. (Schopenhauer)
“… todo o caso de morte que resulta directa ou indirectamente de um acto positivo ou negativo praticado pela própria vítima, acto que a vítima sabia dever produzir este resultado”. (Durkheim)
Como pode ser percebido, as definições são multifacetadas, às vezes diametralmente ou sutilmente contraditórias, às vezes complementares. Tal amplitude conceitual pode decorrer da natureza ambígua do suicídio que insere vida e morte.
Um dos acontecimentos mais marcantes narrados em Ponciá Vicêncio é uma trágica tentativa de suicídio. Desesperado com as deploráveis condições de vida e angustiado pela venda de seus filhos, o avô da protagonista assassina sua mulher e tenta se matar. Embora seja possível analisar esse evento à luz de todas as definições listadas acima, privilegiaremos o diálogo com o pensamento de Goethe e Rousseau e com a análise sociológica proposta por Durkheim por nos parecerem mais alinhadas com o contexto da obra literária sobre a qual nos debruçamos.
Todavia, antes de proceder nesta direção, faz-se necessária uma pequena digressão para que sejam considerados alguns aspectos psicossociais e históricos sobre o suicídio. Segundo a Enciclopédia Delta de História Geral, em um ritual realizado na cidade de Ur, datado de 2.500 a.C., doze indivíduos ingeriram uma bebida envenenada e se deitaram para aguardar a morte. A Bíblia também nos fornece registros de suicidas: Sansão, Abimelec, Rei Saul, Eleazar e Judas. Embora a História oficial não tenha registrado os muitos casos de homens e mulheres comuns suicidados, é viável uma breve análise histórica baseada no tratamento que a sociedade dispensou ao assunto e como esse tratamento foi sofrendo modificações ao longo dos séculos.
Na antiga Grécia, por exemplo, o suicídio deveria ser uma decisão consensual do grupo uma vez que ameaçava a estrutura interna da comunidade. A prática era julgada nas esferas política ou jurídica. Os procedimentos padrão de sepultamento eram negados ao suicidado ilegítimo e a mão do defunto era cortada e enterrada separadamente. Em contrapartida, ao Estado cabia coibir ou permitir um suicídio.
A respeito da prática do suicídio em Roma e Atenas, são iluminadores os comentários de Marcimedes Martins da Silva a cujo trabalho fizemos menção anteriormente:
Em Roma, como em Atenas, adotou-se em relação ao suicídio atitudes diferentes, legitimando a morte do senhor que se matava e condenando a morte do escravo suicidado. O senhor, um homem livre, ao se matar exercia sobre si mesmo o direito próprio de sua condição social, amparado no espaço político pela lei pública. O escravo, porém, matando-se, ia contra a autoridade do senhorio, contestando seu poder e diminuindo seu capital, o que era contra a lei familiar predominante no espaço doméstico. O gesto suicida, glorificado no cenário político, era condenado quando se tratava de um escravo porque o valor do ato era inseparável da condição social do indivíduo. Entretanto, ao matar-se, a denúncia do escravo ia além da sua condição social e além do espaço doméstico porque colocava em xeque os valores universais de liberdade e justiça, os quais aparentavam ser exclusivos de seu senhor quando este lutava na defesa de sua cidade e de seus privilégios.
As oscilações de posicionamento da sociedade face ao suicídio vão-se transformando culminando com a sua condenação teológica na Idade Média cristã. A vida humana passa a ser encarada como deífica e cometer suicídio passa a corresponder a um ato sacrílego.
A Revolução Francesa representa um marco para a suicidologia pois suprimiu a repressão ao suicídio. Na seqüencia de seu estudo, Marcimedes Martins da Silva cita a assaz interessante interpretação do psiquiatra Eduardo Kalina e do ensaísta, poeta, tradutor e filósofo Santiago Kovadloff para quem tal fato denotou que a prática não era mais vista como uma ameaça à solidez do Estado:
Entre a pessoa e a comunidade começou a se abrir, em meados do século XVIII, uma distância que duzentos anos mais tarde terminará constituindo as múltiplas formas de incomunicação contemporânea. Por isso, mais que um ato de indulgência estatal frente ao indivíduo, deve-se ver nesta liberalização progressiva das normas punitivas com respeito ao suicídio uma expressão de irrelevância social que começa a pesar sobre a pessoa. Ou seja, não se contempla o suicídio com tolerância porque se o compreende, mas porque já não se lhe atribui maior transcendência coletiva.
Igualmente interessantes são as interlocuções entre a obra clássica de Durkheim e o estudo de Kalina e Kovadloff também propostas por Marcimedes Martins da Silva. Para ele, a primeira enfatiza a significação social do suicídio pessoal, compreendido como uma “denúncia individual de uma crise coletiva” enquanto o segundo “parte da premissa de que em cada sujeito que se mata fracassa uma proposta comunitária”. Na seqüência de seu trabalho, Marcimedes Martins da Silva elabora uma intrigante hipótese: partindo da conjetura de que o suicídio é um processo e que não se encerra com a morte, ele sugere que o mesmo seja entendido com um gesto de comunicação, ou seja, o indivíduo se mata para relacionar-se com os outros e não para ficar só ou desaparecer” pois “a morte é o único meio que o sujeito encontra para restabelecer o elo de comunicação com os outros.
Voltemos ao romance em questão. Como já foi registrado, um dos eventos mais trágicos narrados em Ponciá Vicêncio é a tentativa de suicídio do avô da personagem central:
No tempo do fato acontecido, como sempre os homens e muitas mulheres trabalhavam na terra. O canavial crescia dando prosperidade ao dono. (…) Sangue e garapa podiam ser um líquido só. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a mulher, começou a se autoflagelar decepando a mão. Acudido, é impedido de continuar o intento. Estava louco, chorando e rindo. Não morreu o Vô Vicêncio, a vida continuou com ele, independentemente do seu querer. Quiseram vendê-lo. Mas quem compraria um escravo louco e com o braço cotó? Tornou-se um estorvo para os senhores. (p. 50)
Partindo do pressuposto de que o suicídio é um gesto de comunicação através do qual o indivíduo transmite sua mensagem para a sociedade, o que se pode deduzir de uma tentativa fracassada tal qual a descrita acima? A violenta busca pela comunicação – comunicação essa já cruelmente comprometida pela sociedade – é tragicamente interrompida uma vez que o gesto frustrado é incapaz de restabelecer a almejada via de diálogo. O evento é duplamente trágico pois nem através de seu mais extremado e desesperado ato, o indivíduo consegue superar a incomunicação.
À luz da definição de Rosseau para quem o suicídio é “uma violação ao dever de ser útil ao próprio homem e aos outros”, é possível vislumbrar a complexidade do ato cometido por Vô Vicêncio que, aleijado emocionalmente, se autoflagela, aleijando-se fisicamente. Transformada em pária, a personagem tem sua trajetória de dor intensificada e tristemente estendida aos seus familiares na forma de vergonha, incompreensão, resignação e medo de que outros pudessem ser herdeiros de sua herança de desespero e loucura.
A pertinente reflexão de Goethe, para quem o suicídio é “um ato próprio da natureza humana e, em cada época, precisa ser repensado”, nos remete aos aspectos políticos, sociais, históricos e, no caso do presente trabalho, literários envolvendo a questão. Faz-nos pensar sobre o papel que a sociedade deveria desempenhar e sobre as conseqüências que a falta de aprofundamento no assunto pode causar nas comunidades. O pensamento de Goethe também aponta para a premente necessidade de que estudos sobre o suicídio entre os escravos sejam engendrados para que tenhamos uma melhor compreensão sobre a psique dos afro-descendentes. No contexto literário, todas estas linhas de pensamento se encontram no romance analisado, habilmente caldeadas por Conceição Evaristo cujo texto tem o efeito moral e purificador da tragédia clássica, ou seja, através das situações dramáticas e extremamente intensas e violentas vividas pelas personagens, o leitor vivencia uma notável experiência catártica.
CONCLUSÃO
O páthos em Ponciá Vicêncio não é pautado pela lugubridade. Um dos aspectos mais interessantes e essenciais da obra reside justamente na discussão sobre os limites entre a vida e a morte, mesmo em se tratando da morte psicológica, a partir da vida.
Em seu brilhante ensaio intitulado Nova voz da escrita feminina portuguesa: Dulce Maria Cardoso, publicado na Tribuna de Feira de Santana, a professora Marlise Vaz Bridi (Universidade de São Paulo) ilumina e amplia esta perspectiva com rara lucidez e perspicácia:
(…) coloca-se no interior de sua narrativa (…): como compreender a morte a partir do único modo possível de sua observação, a partir do milagre da vida. Enquanto existência, a vida exclui a morte, a não ser enquanto a vivência da morte alheia, ainda que projetada em nós. Daí a necessidade (…) de a obra ser concebida como uma obra aberta, como uma narrativa que não se encerra (ainda que finde). Toda a ambigüidade de um final inconcluso aponta para as possibilidades, que se abrem em leque, diante de uma narrativa, que, afinal, apenas fixa algumas visadas sobre a vida, sempre infinita, ainda que aparentemente restrita a um único indivíduo.
Embora a análise refira-se a outra escritora, as convergências temáticas e formais com o texto de Conceição Evaristo são manifestas:
(…) Um dia ele teve uma crise de choro e riso tão profunda, tão feliz, tão amarga e desse jeito se adentrou pelo outro mundo. Ela, menina de colo, viu e sentiu o odor das velas acesas durante toda a noite. Viu o braço inteiro do velho sobre o peito. Viu o bracinho cotoco dele. Sentiu o cheiro de biscoito frito, de café fresco dado para as mulheres e as crianças que estavam fazendo quarto ao defunto. Sentiu também o cheiro de pinga que exalava da garrafinha e da boca dos homens sentados lá fora com o chapéu no colo. Ponciá Vicêncio, mesmo menina de colo ainda, nunca esqueceu o derradeiro choro e riso do avô. Nunca esqueceu que, naquela noite, ela, que pouco via o pai, pois ele trabalhava lá na terra dos brancos, escutou quando ele disse para a mãe que Vô Vicêncio deixava uma herança para a menina. (p. 12-13)
O fragmento remete a um outro tema fundamental, tratado com sutiliza e agudeza de espírito pela autora: a alteridade. Com o intuito de alargar nosso campo de visão, façamos uso da caracterização proposta por Fernando Arenas em seu notável ensaio Utopias da Alteridade: Conceitos na História e Ficção Brasileira e Portuguesa, publicado na Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ:
O privilegiar do ‘outro’ como horizonte ontológico primário, ético e político na literatura e na filosofia (…) indica o seu surgimento como fronteira utópica de crucial importância dentro da cultura global contemporânea. Podemos descrever este fenômeno como a ‘utopia da alteridade’ ou a ‘utopia do outro’.
Antes de proceder, vale ressaltar o importante papel que o pensamento utópico tem desempenhado na história da modernidade ocidental na medida que tem sido manancial de imaginários que propõem novas maneiras de ser e de estar comunitariamente.
Apesar do uso excessivo do vocábulo e do esvaziamento de suas propostas, as utopias permanecem necessárias, devendo, entretanto, ser consideradas a partir de perspectivas mais modestas e mais humanas.
Na contramão da descrença face aos grandes projetos utópicos, nascem pequenos imaginários utópicos que, abdicando de mudanças extremas nas macroestruturas sociais, visam tratar questões existenciais, sociais e de sobrevivência localmente, focando tanto o indivíduo quanto a coletividade.
Embora as acepções proliferem, causando um desgaste do termo, privilegiaremos as definições – diligentemente elencadas por Fernando Arenas a cujo ensaio já fizemos menção – de Kumar, Davis e Boaventura de Sousa Santos, para quem, respectivamente “a utopia apresenta-se como um relato da situação contemporânea da humanidade sugerindo ao mesmo tempo possíveis saídas”; “a utopia pode também ter contornos sócio-políticos e culturais claros, acreditando no aperfeiçoamento da humanidade, da natureza e na validade de meios institucionais e organizados para a construção de sociedades ordenadas e estáveis”; a utopia é “a exploração, através da imaginação, de novos modos de possibilidades humanas e estilos de vontade”.
Conceição Evaristo aborda as dimensões ontológicas e éticas imanentes à alteridade concentrando-se nos laços de solidariedade e ternura que unem os membros da família – entendida aqui tanto no contexto literário quanto sociológico – e na amizade entre o irmão da protagonista e o soldado Nestor. Outrossim, o leitor também tem função ativa nesse processo. Fernando Arenas ilumina a questão ao declarar que o outro é também “aquele que acena ou comanda das margens de minha esfera mental quando me dedico ao acto criativo”. O ensaísta complementa e consolida o raciocínio ao afirmar que “este acto criativo pode ser representado pelos actos da escrita e da leitura. A emergência do outro no acto da escrita assim como no da leitura seria o resultado da sua interacção com a singularidade do ‘outro’ que se manifesta no processo criativo”.
Busquemos mais uma vez na obra a melhor e mais comovente tradução dos conceitos apresentados:
(…) Assim como antes acreditava que ser soldado era a única e melhor maneira de ser, tinha feito agora uma nova descoberta. Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas. Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura da próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. (p. 131)
Dada a morbidez, o esgotamento, a debilidade e o esfacelamento das utopias do marxismo, das religiões, dos nacionalismos e da globalização, resta-nos a literatura como o alicerce ontológico primordial de fé e esperança.
BIBLIOGRAFIA
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CANDIDO, Antonio. A Formação da Literatura Brasileira.Belo horizonte: Itatiaia, 1981.
CARPEAUX, Otto Maria. “Introdução”, História da Literatura Ocidental, 2ª ed., Rio de Janeiro: Alhambra, 1987, vol. I.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
GILROY, Paul. The Black Atlantic – Modernity and Double Consciousness. London: Verso, 1993.
MENDONÇA, Maisa; WERNECK, Jurema; WHITE, Evelyn C. (orgs.). O Livro da Saúde das Mulheres Negras – Nossos Passos Vêm de Longe. Rio de Janeiro: Pallas Editora/Criola, 2000.
MORRISON, Toni. Beloved. New York: PLUME, 1987.
PARKES, Colin Murray. Luto – Estudos sobre a perda na vida adulta: São Paulo: Summus Editorial, 1998.