“Direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos”, dizem juízes em nota a favor da legalização do aborto

Teve início hoje (3) a primeira das audiências públicas sobre a descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal (STF). As audiências fazem parte de uma ação que corre no STF (ADPF 442) na qual se pede a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação.
CHRISTOPHE SIMON/GETTY
Mais de 40 representantes da sociedade, entre Igrejas, Universidades, organizações de direitos humanos, órgãos públicos e entidades da área de saúde foram habilitados à se manifestar sobre o tema, defendendo seus pontos de vista e argumentos, antes que a suprema corte decida a questão.
A Associação de Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes de todo o território nacional, entrou com pedido nesta quarta-feira (1º) para também ser aceita como amicus curiae (termo técnico que significa “amigo da corte” condição equivalente a um “consultor” dos magistrados) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 442.

Em nota técnica, divulgada no site da instituição nesta quinta-feira (2) e enviada aos ministros do STF, a AJD se posiciona pela legalização da interrupção voluntária da gravidez.

Hoje, o Brasil permite o aborto em apenas três situações: quando a gravidez apresenta risco de morte materna; em caso de gravidez decorrente de estupro; e, por fim, quando o feto é anencéfalo. Se a ação for julgada procedente, o aborto deixará de ser crime em todos os casos o que significa que nenhuma mulher poderá ser presa por interromper uma gravidez até a 12ª semana e hospitais e clinicas médicas poderão oferecer o procedimento legalmente e de forma segura.
Leia a íntegra da nota a seguir:

NOTA TÉCNICA 

 

A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes trabalhistas, federais e estaduais de todo o território nacional e de todas as instâncias, e que tem por objetivos primaciais a luta pelo respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito e pela defesa da independência judicial, vem apresentar a presente NOTA TÉCNICA a respeito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 – DF e pela legalização da interrupção voluntária da gravidez.

A Organização dos Estados Americanos, através de sua Comissão Interamericana de Mulheres emitiu a Declaración sobre la Violencia contra las Niñas, Mujeres, y Adolescentes y sus Derechos Sexuales y Reproductivos – Mecanismo de Seguimiento Convención Belém do Pará(MESECVI) – Undécima Reunión del Comité de Expertas/os, 18 – 19 de septiembre de 2014, Montevideo, Uruguaydeclarando que os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte do catálogo de direitos humanos que protegem e defendem o Sistema Universal e Interamericano de Direitos Humanos e se baseiam em outros direitos essenciais, incluindo os direitos à saúde, a estar livre de discriminação, à vida privada, à integridade pessoal e, dentre outros, o direito de tomar decisões sobre a reprodução livres de discriminação.

Como se vê, os órgãos internacionais consideram como direitos humanos das mulheres os direitos reprodutivos e sexuais que se fundamentam em outros direitos de igual magnitude.

No Brasil, o aborto configura crime exceto nos casos de risco de vida para as mulheres gestantes, gravidez resultante de estupro e, desde 2012, nos casos de má formação fetal diagnosticada como anencefalia.

Apesar da proibição, o aborto não deixa de ser realizado, como constata a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, coordenada por Debora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, segundo a qual o aborto é um fenômeno frequente e persistente em todas as classes sociais, grupos raciais, níveis de escolaridade e religiões, afirmando-se que 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos, já realizara um aborto. Conclui a pesquisa que:

Considerando que grande parte dos abortos é ilegal e, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto como um dos maiores problemas de saúde pública no país (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). 

Verifica-se que a escolha estatal de criminalizar a interrupção voluntária da gravidez acaba por impedir o acesso das mulheres que abortam a um serviço de saúde adequado e seguro. Os pesquisadores ressaltam que a criminalização do aborto não atende à finalidade declarada na norma:

(…) por um lado não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que as mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo. (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017) 

Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, com o maior acesso a medicamentos abortivos, como o misoprostol, que é o recomendado pela Organização Mundial de Saúde, houve uma diminuição dos casos de internação hoje em relação à década passada, porém os riscos ainda são muito concretos:

Permanecem, no entanto, outros riscos importantes à saúde, o que se nota pelo fato de que metade das mulheres que abortou precisou ser internada para o finalizar (…) (Sic) (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017)

Entretanto, o acesso aos medicamentos pressupõe sua divulgação e oportunidade de informação sobre como adquirir, como usar e sobre sua farmacodinâmica. 

Frise-se que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em documento sobre o acesso à informação em matéria reprodutiva desde uma perspectiva de direitos humanos (OEA documentos oficiales ; OEA Ser.L/V/II. Doc.61), afirma que o acesso à informação está extremamente vinculado com a realização de outros direitos humanos e, portanto, a falta de respeito e garantia desse direito para as mulheres pode acarretar uma vulneração de sua integridade pessoal, sua vida privada e familiar e ao direito de viver livre de discriminação e violência. Especialmente na área da sexualidade e da reprodução, o direito à informação é especialmente relevante, na medida em que contribuem para a tomada de decisões livres e fundamentadas a respeito de aspectos íntimos da personalidade. 

No entanto, no Brasil, a Anvisa editou a Resolução – RE nº 753, de 17 de março de 2017 que proíbe a distribuição, divulgação e comercialização do misoprostol numa sonegação que não impede a prática abortiva e aprofunda os riscos para a saúde e a vida das mulheres. Aliás, essa proibição de acesso ao direito à informação tem consequências sérias inclusive para as mulheres que têm direito a realizar o aborto legal, como no caso de gravidez resultante de estupro, uma vez que acaba por submeter essas mulheres a um procedimento mais dispendioso, longo e arriscado, muitas vezes com sofrimento físico a redundar em verdadeira violência obstétrica(VÉLEZ, 2018)

Sabe-se também que a criminalização atinge de modo mais brutal e perigoso as mulheres pobres, pois à míngua de um serviço público de qualidade, elas se submetem às práticas abortivas em condições mais precárias que as mulheres que dispõem de recursos econômicos para interromperem a gravidez em condições mais seguras, do que resulta um elevado número de complicações e mortes.

Diante das profundas desigualdades estruturantes da sociedade, as mulheres descapitalizadas são as que mais sofrem as nefastas consequências da proibição, uma vez que o Sistema Único de Saúde é impedido de fornecer o serviço médico para a interrupção voluntária da gestação, o que demarca e contribui para aprofundar os abismos sociais, eis que as mulheres pobres não têm a possibilidade de obter o serviço pela via remunerada.

Embora essa seja uma situação sobre a qual não há divergência nos órgãos oficiais de saúde, o aborto continua sendo alvo de reprovação pelos setores conservadores, cujos discursos são marcos importantes para que se possa aferir a saúde da democracia brasileira, uma vez que as discussões sobre o tema são entremeadas de valorações morais que colocam em cheque tanto a plena cidadania das mulheres quanto a laicidade do Estado.

Ocorre que os artigos do Código Penal que tipificam o aborto são atos estatais legislativos que devem refletir a decisão política fundamental democraticamente adotada na Constituição da República de 1988 que consagra a liberdade religiosa e o caráter laico do Estado (artigo 5º, inciso VI e artigo 19 inciso I, ambos da Constituição da República) garantindo que os direitos fundamentais não sejam subordinados aos nortes e dogmas religiosos.

Quanto à cidadania, tem-se, em primeiro lugar, que os discursos sociais hegemônicos da maternidade tradicional como base da identidade feminina se intercalam com a defesa da sexualidade sujeita à procriação e à negação das diferentes formas de viver a sexualidade, pautas que projetam esses atores no cenário politico como blocos ideológicos que buscam se legitimar ancoradas em preceitos religiosos e ampliam o peso das questões sexuais e reprodutivas como se de fato fossem relevantes para o destino do país.

Da ascensão desse conservadorismo resulta não apenas o aprofundamento do fosso das desigualdades sociais e econômicas e a potencialização dos processos de marginalização de grupos e indivíduos diferenciados ou mesmo a absorção das mulheres pela figura essencializada da mãe, abstração que de um lado as coloca como cuidadoras da prole e de outro nega aos homens o reconhecimento de igual competência para prestar os mesmos cuidados, negando que uns e outros dependem de suas posições nas relações sociais para executarem com êxito essa tarefa. O conservadorismo, quando se torna o ponto comum do acordo das forças policiais, da economia privada e das igrejas, elimina a possibilidade de que qualquer decisão pública seja tomada com base em uma atividade política democrática não apenas para as mulheres, mas para todos aqueles que não podem ser representados por esses setores, em especial a população negra, empobrecida e marginalizada.

Assim, a afirmação da autonomia das mulheres para decidir sobre a interrupção da gravidez toca em questões que não se restringem ao aborto, mas ao funcionamento da democracia, aos espaços e formas da regulação do Estado, às hierarquias e formas de dominação, aos direitos humanos individuais e coletivos, fatores esses que, confrontados com a defesa do direito ao aborto, expõem que os imperativos que estão na base de representações sociais convencionais da sexualidade e da reprodução é a violência contra as mulheres.

É bem de ver que as mulheres se encontram em condição subalternalizada desde o cercamento de terras (FEDERICI, 2017) e, para sua emancipação, precisam superar o patriarcado que, partindo de uma avaliação histórica, é uma forma de organização social e familiar centrada na supremacia masculina, tomando como base o modelo da família patriarcal, entendida como aquela em que a autoridade do pai e marido é total.(MIGUEL, 2017)

Dessa forma, carece de legitimidade social a norma jurídica proibitiva que, ao criminalizar o aborto, viola os direitos fundamentais das mulheres à auto-determinação, à decisão sobre seu planejamento familiar, à sua escolha de projeto individual de vida, à informação, à saúde e até à vida, o que é ainda mais profundo em se tratando das mulheres oriundas das classes menos favorecidas economicamente. Ao criminalizar o aborto, o ordenamento jurídico a um só tempo rompe com a igualdade entre homens e mulheres e aprofunda o abismo social entre as mulheres integrantes das classes dominantes e aquelas descapitalizadas. 

Nesse prisma, a norma proibitiva penal do aborto induzido e voluntário assegura os interesses patriarcais e conservadores dominantes, negando as reivindicações e os direitos das mulheres que são historicamente subalternalizadas e oprimidas.

Enquanto os corpos das mulheres sofrerem a intervenção do Estado e o controle social, suas individualidades não podem ser sustentadas como valor e elas permanecerão na qualidade de cidadãs de segunda categoria.

A Associação Juízes para a Democracia, desde sua fundação, engaja-se nas reivindicações, debates e ações concretas a respeito das liberdades públicas e, em especial, à descriminalização do aborto, dada a sua natureza de direito humano das mulheres inserido em seus objetivos estatutários.

Nesse passo, considerando que os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos da Constituição Federal (art. 1o , incisos I e II; art. 3o , inciso IV; art. 5o , caput e incisos I, III; art. 6o , caput; art. 196; art. 226, § 7º), constituem pilares da vigência dos direitos humanos expressos na Carta Maior, a Associação Juízes para a Democracia mais uma vez assume sua posição histórica protocolando nessa data (01/08/2018) pedido de ingresso nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 na qualidade de amicus curiae para a defesa de excluir, do âmbito de incidência dos art. 124 e 126 do Código Penalo aborto induzido e voluntário realizado nas primeiras 12 semanas de gestação, por afronta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e à cidadania das mulheres.

REFERÊNCIAS :
FEDERICI, S. Calibã e a bruxa : mulheres, corpo e acumulação primitivaTraducao Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. 
MIGUEL, L. F. Going Back to the Discussion on Capitalism and Patriarchy. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 3, p. 1219–1237, dez. 2017. 
VÉLEZ. La economía moral de las normas restrictivas sobre aborto en América Latina: vidas ilegítimas o de cuando la propia norma es la violación. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2018.

 

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