Panorama
Cine Negra Diáspora
De Almada
Conduzindo Miss Daise (1989), A cor púrpura (1985) e Faça a coisa certa (1998) são filmes colocados no imaginário dos cinéfilos do mundo todo e considerados clássicos da Sétima Arte nos quais foi marcante a presença negra. Atualmente já existe quem aponte para a existência de um “cinema da diáspora negra”, expressão sob a qual se abrigam as produções de cineastas de diferentes nacionalidades – negros e brancos – inspirados por questões ou personagens negras. Mas onde este tipo de obra estaria sendo produzida? Quem são os artistas que assinam roteiros, dirigem equipes e que atuam nos sets de filmagens? É um cinema crescido e forte o suficiente para buscar seu lugar no disputado mercado cinematográfico? A cineasta paulista Lilian Solá Santiago, que há três anos vem assinando a organização, produção e curadoria de um dos mais bem sucedidos festivais de cinema negro internacional realizado no Brasil, ajuda a responder parte destas questões
Com patrocínio da Caixa Cultural, a mostra Espelho Atlântico, no Rio de Janeiro, ressalta no subtítulo a expressão “cinema da diáspora” que, de acordo com Lilian, ajuda a definir formas de expressões cinematográficas que trazem em si pontos em comum. “Os filmes são africanos ou realizados nos continentes onde há grande concentração de afrodescendentes devido à escravidão colonial. Além dos africanos, temos filmes americanos – América do Norte, Central e Sul – e, ainda, europeus. A ida de africanos escravizados para esses lugares é que chamamos de diáspora negra. Essa dispersão de africanos pelo planeta no período colonial foi realizada basicamente por meio de navios que cruzaram o oceano Atlântico. Por isso o nome da mostra ser Espelho Atlântico, explica Lilian. Sobre a seleção das obras que participam da mostra, a organizadora conta que, na categoria ficção, o critério principal é que os filmes tenham atores e atrizes negras como protagonistas.
Já no caso dos documentários, é fundamental que as temáticas representem a diversidade cultural africana e dos afrodescendentes dispersos pelo mundo. “Os filmes, geralmente, também devem ser recentes, isto é, terem sido realizados nos últimos cinco anos. Outras mostras que trazem filmes africanos não se preocupam com esse critério, que para mim é muito importante, pois garante uma ‘atualidade’ na representação”, defende.
Quem sentou para assistir no escurinho do cinema da Caixa Cultural os filmes que compuseram a última edição de Espelho Atlântico, se deu conta de que, a se tirar pela última mostra de cinema negro contemporâneo realizada no Brasil, os dramas que envolvem a opressão de gênero e de raça sofridos pelas mulheres continuam sustentando roteiros que comovem e conscientizam plateias pelo mundo. E não é diferente no caso do cinema de autoria ou temática negras. “De fato, na mostra, a questão feminina pode ser vista por diferentes pontos de vista. Em Cabo Verde temos uma realidade muito parecida com a nossa, como pode ser constatado no filme Cabo Verde, meu amor, que trata do problema de abuso e gravidez na adolescência.
Já em Esperando os homens, pudemos acompanhar três mulheres na fechada sociedade da Mauritânia, dominada pela tradição, pela religião muçulmana e pelos homens”, conta Santiago. Do Zimbábue veio a produção Eu quero um vestido de noiva, que associa três temas que se entrelaçam na história de uma jovem africana pobre que quer realizar aquela que é considerada a maior crença romântica também no Ocidente: o casamento por amor. Apaixonada por um homem pobre sem condições de lhe comprar nem sequer um vestido de noiva, a moça acaba por prostituir-se, é agredida e ainda por cima adquire o vírus HIV. Quando o assunto são os conflitos de ordem racial ou social, alguns diretores têm focado suas lentes tanto para as guerras contra o colonialismo na África nos anos 50 e 60, quanto para as guerras civis que marcaram a maioria dos países africanos. É o que se pode ver em O comboio da Canhoca, de Angola; Kuxa Kanema – o nascimento do cinema, de Moçambique, e Mortu Negra, de Guiné- Bissau. Mas a curadora avisa que, mesmo com temáticas recorrentes nos filmes africanos, a diversidade de abordagem das obras do cinema da diáspora é muito grande. “Isto faz com que assistir a esses filmes ajude a diminuir essa visão canhestra de que a África é um continente-país, um bloco cultural unitário.
“Na verdade, ela é extremamente diversificada”, explica Lílian, uma afro-descendente que vem transformando indignação em filmes e que tem no currículo como diretora obras como Família Alcântara, de 2005 (parceria com o irmão Daniel Santiago), Balé de Pé no Chão, de 2006, com Marianna Monteiro, Uma Cidade chamada Tiradentes,rodado em 2007, e, ainda, Graffiti, produção de 2008.
Muita gente considerou O espírito da luta como o filme que deu o “tom” do Espelho Atlântico de 2010. Tendo como protagonistas jovens boxeadores lutando pela conquista de seu espaço, a obra retrata a atual dificuldade de inserção dos países africanos no capitalismo mundial. O tema também foi explorado pelos realizadores deAproveite a pobreza, sobre a ‘indústria’ da pobreza no Congo, e ainda,Bem-vindo a Nollywood de Jamie Meltzer – documentário voltado para a indústria cinematográfica emergente na Nigéria, considerada, hoje, a terceira maior do gênero no mundo, ficando atrás apenas da Índia e dos Estados Unidos e que tem como personagens três conceituados realizadores nigerianos. O crescimento deste tipo de produção em países até então desprovidos de recursos para representarem seus universos regionais, culturais, existenciais e políticos através de seus próprios filmes trata-se de um fenômeno dos mais interessantes. “Se eles (os países ricos), séculos atrás, nos colonizaram, nós, hoje, os estamos ‘colorizando'”, afirmou certa vez o geógrafo Milton Santos, fazendo um trocadilho entre colonizar e ‘colorizar’ para mostrar as consequências históricas da presença negra, mestiça e amarela dos imigrantes que, vindos dos países pobres e ex-colônias, vivem, atualmente, nas grandes nações ricas do mundo pósmoderno.
A câmera de Claire Denis, cineasta francesa, resolveu registrar a “colorização” de uma metrópole como Paris. Em 35 doses de rum, coprodução franco-alemã de 2008, ela mostra o cotidiano de negros na Cidade Luz. Na tela, as imagens iniciais do filme fazem o público acompanhar o trajeto do metrô pelas linhas férreas que se entrecruzam e passam pelos subúrbios franceses. Uma bela metáfora cinematográfica para o entrecruzamento de vidas que atravessam a interessante narrativa que se segue. Este tipo de produção também aponta para outro fenômeno. Se a maioria dos filmes daquilo que vem se chamando de diáspora negra ainda é produzida nos Estados Unidos, contudo, a Europa tem cada vez mais aparecido como produtora e coprodutora de obras com estas características. É a demanda pelas recentes ondas migratórias que aumentou a produção francesa, alemã e os fomentos ao audiovisual nas ex-colônias.
DESTAQUES DO ESPELHO:
Em 2008:
Kuxa Kanema
o nascimento do Cinema, de Margarida Cardoso
Um dos maiores destaques da mostra. O documentário, feito em parte com materiais de arquivo do Instituto Nacional de Cinema, tem imagens do período revolucionário em Moçambique, feitas logo após a independência do país.
Balé de Pé no Chão, de Lilian Solá Santiago e
A Cidade das mulheres, de Lázaro Faria
Com histórias reais de mulheres negras, ambos foram recebidos pelo público com entusiasmo. No primeiro, a personagem é Mercedes Baptista, bailarina criadora da dança afrobrasileira. O segundo traz as mães de santo com sua soberania na organização matriarcal do candomblé na Bahia.
Em 2009:
Cinderelas, lobos e um príncipe encantado, de Joel Zito Araújo
O polêmico documentário mostrou as facetas do turismo sexual no Brasil, principalmente no Nordeste, chamando a atenção do público para um problema sexual que envolve pobreza e tráfico de mulheres.
Ossudo, de Julio Alves
A animação portuguesa, baseada no conto Ossos, do escritor angolano Mia Couto, também se destacou em sua primeira exibição no Brasil, depois de passar por mais de vinte festivais pelo mundo.
Cariocas, de Ariel de Bigault
Apresentado por Grande Otelo e feito originalmente para a TV francesa, apresenta um inédito ponto de vista da importância e originalidade da cultura brasileira na Europa e o quanto essa cultura é vista como afro-brasileira.
Em 2010:
O espírito da luta, de George Amponsah
Bukom, um pobre vilarejo de Gana, é o maior produtor de campeões de boxe do mundo. O documentário norte-americano acompanha três boxeadores de lá, dois homens e uma mulher que trilham o caminho para a conquista dos maiores prêmios desse esporte, na África, em Nova Iorque e Londres.
Yandé Coudou, uma griot de Senghor, de Angèle Diabang Brener
Documentário sobre a cantora que é uma das últimas mestras da poesia polifônica ‘serere’. A obra é um encontro íntimo com uma diva que atravessou a história do Senegal perto de um de seus maiores mitos, o presidente e poeta Léopold Senghor
Colaboração RAQUEL MARCELINO
Fonte: Blog da Lilian Santiago