Em 2020, mesmo enredos aparentemente menos engajados flertarão com questões contemporâneas
Por Rafael Galdo, Do O Globo
A imagem de Jesus pregado a uma cruz que chegará a 20 metros de altura, na Mangueira. Mulheres ativistas e o símbolo do feminismo estampado em fantasias da Viradouro. Um “planeta fome” na Mocidade. No Salgueiro, a homenagem a artistas negros que lutam contra o racismo. E, na Grande Rio, padres, pastores, pais e mães de santo juntos, numa alegoria para representar um terreiro de candomblé. Impassível ninguém ficará aos desfiles do Grupo Especial que começam hoje à noite na Sapucaí. Aprofundando um rumo trilhado nos últimos carnavais, o deste ano levará ao Sambódromo assuntos que fervilham na sociedade atual.
Será um cortejo de bandeiras sociais, recados à classe política e a signos que estão no centro dos debates do momento. Ainda haverá espaço para viagens a civilizações antigas e temas abstratos. No entanto, mesmo enredos aparentemente menos engajados flertarão com questões contemporâneas.
— A exuberância simbólica de uma escola de samba, onde o pobre vira um deus ou faz algo mágico, como uma compensação da realidade, é um fato político importante. Mas os assuntos cada vez mais sérios fazem dos desfiles uma crônica do cotidiano brasileiro, “rotinizam” mais o carnaval — afirma o antropólogo Roberto DaMatta.
Tolerância religiosa, sem dúvidas, será um dos apelos mais recorrentes. A versão mangueirense para a vida de Cristo — representado em diversas faces, como a de um negro ou de um indígena — reverbera uma das temáticas mais polêmicas dos últimos anos, como a que cercou a peça “O evangelho segundo Jesus Rainha do Céu”, encenada por uma atriz transexual. Nessa cadência, o próprio carnavalesco Leandro Vieira costuma ressaltar que todo artista é uma espécie de “esponja”, um radar das tramas que desenrolam à sua volta.
Santos católicos
A religião também atravessa as abordagens de outras escolas, mesmo quando não é o tema central do enredo. E, assim como a Mangueira, algumas delas, como Mocidade, Beija-Flor, Grande Rio e Viradouro, são apontadas como favoritas, numa disputa que promete ser acirrada. Só as imagens de diferentes santos católicos são reproduzidas nas alegorias de pelo menos sete agremiações.
Na União da Ilha, o abre-alas será uma favela hiperrealista, sobre a qual vai “flutuar” uma lua de cinco metros de diâmetro que se abrirá e revelará São Jorge, representado pelo carnavalesco Fran-Sérgio. Já a escultura do Cristo Redentor aparecerá na Tijuca. E, na Grande Rio, o homenageado é o pai de santo Joãozinho da Gomeia, com o último setor inteiro, chamado “O revoar da liberdade”, como um grito contra a intolerância religiosa, o racismo e a homofobia.
— É um personagem que traz essas questões. Quantos não são os terreiros de candomblé atacados na Baixada Fluminense? — lembra o carnavalesco Leonardo Bora.
Sociólogo do Observatório de Carnaval da UFRJ, Mauro Cordeiro ressalta que essas escolhas não são aleatórias:
— O debate sobre religião, por exemplo, é central na cena pública do país e da cidade do Rio atualmente.
O pesquisador afirma ainda que, num cenário de crise no carnaval, as escolas tentam se reaproximar de seu público e das comunidades. Para ele, isso reflete não só nos enredos, mas também na repetição de cenas como as das favelas, que aparecem na Ilha, Tijuca, Mangueira e Mocidade.
A verde e branco da Zona Oeste, aliás, celebra Elza Soares, a principal personalidade homenageada este ano na Sapucaí. Ela própria encarna muitas das bandeiras que serão levadas à Sapucaí. E, no desfile da escola, aparecerão temas como racismo, feminicídio e misoginia, com a diva como porta-voz das mulheres e da população LGBT.
Já a questão ambiental aparecerá na Tijuca e na Portela. A São Clemente, que, desde 2019, retoma sua identidade crítica, tratará de fakenews, caixa 2 e “laranjas”.
— Somos a escola cômica do carnaval — afirma o carnavalesco Jorge Silveira.
Primeiro palhaço negro do país
O caminho da alegria também é o do Salgueiro para tratar de uma ferida exposta do Brasil. A escola celebrará Benjamin de Oliveira, que, entre muitos talentos, foi o primeiro palhaço negro do país. Através de sua história, discutirá o racismo, com a presença de dezenas de artistas negros, como Helio de la Peña, Nando Cunha e Carla Cristine Cardoso.
— Representaremos os “Benjamins” em busca de reconhecimento — diz Helio.
Nando completa:
— O Benjamin se apresentava com uma maquiagem branca no rosto, porque sua pele causava estranheza. O carnaval serve como voz potente para tratar do racismo. O mundo todo está lá para ver.