Mulherada equilibrista

O Brasil avançou em arcabouço legal, mas ainda deve um monte à população feminina

É na corda bamba da violência extrema e da luta por direitos que se equilibram meninas, jovens e mulheres no Brasil e mundo afora. Num punhado de dias, o estupro de uma adolescente de 15 anos na Baixada Fluminense cometido, filmado e divulgado e, em São Paulo, um crime sexual evitado, porque um motorista de ônibus atento a sinais resgatou a vítima. De um lado, um grupo de estudantes de não mais de 16 anos usando criminosamente a inteligência artificial para produzir e compartilhar fotos de nudez de duas dezenas de meninas, também menores de idade; de outro, o tema de redação do Enem convidando futuros universitários a refletir sobre carga de afazeres domésticos e de cuidados impostos às mulheres desde sempre.

No mesmo planeta em que a guerra de Israel contra o Hamas faz de mulheres e crianças palestinas a maioria dos mortos, trabalhadoras da Islândia fazem greve em casa e na rua por igualdade de renda e contra a violência. Enquanto no Irã jovens são reprimidas e perdem a vida por não usarem o véu islâmico, a iraniana Narges Mohammadi levou o Nobel da Paz, por lutar contra a misoginia, e a americana Claudia Goldin o de Economia, pelos estudos sobre o mercado de trabalho na perspectiva de gênero. Vem da Terceira Lei de Newton o ensinamento: a toda ação, uma reação.

Com altos e baixos, decepções e alento, brutalidade e acolhimento se molda a condição feminina. No Brasil, a igualdade de gênero foi conquista maiúscula do movimento feminista na Constituição de 1988, posto que mulheres, até hoje, são sub-representadas na política — e cada vez mais, dada a desidratação de presença feminina nos ministérios, no STF e nas mudanças ardilosas em curso na legislação eleitoral.

O Brasil avançou em arcabouço legal (leis Maria da Penha, de estupro, feminicídio, importunação sexual, igualdade salarial), mas ainda deve um monte à população feminina, 51,5% dos habitantes. Mulheres, sobretudo negras, são maioria entre desempregados, informais, baixa renda e escassas nas posições de poder e alta remuneração. Carregam como obrigação os afazeres domésticos e as tarefas de cuidados com pessoas. Nas últimas décadas, as brasileiras passaram a ter menos filhos e se escolarizaram. Ainda enfrentam barreiras para entrar e ascender na profissão. De quebra, assumiram o zelo com idosos, porque a longevidade aumentou, mas as políticas públicas para esse grupo etário não.

As barreiras que o mercado de trabalho ainda impõe às mulheres são foco dos estudos que renderam o Nobel à professora Goldin, da Universidade Harvard. Ela reuniu mais de dois séculos de informações nos Estados Unidos para concluir que a diferença salarial para os homens se mantém, mesmo com escolaridade e participação crescentes das mulheres no mundo laboral. A maternidade explica, seja por discriminação, seja pelas atribuições familiares. Haja saúde física e mental.

— Ela foi a terceira mulher premiada com o Nobel de Economia e a primeira a ganhá-lo sozinha. Isso já mostra a dificuldade para mulheres economistas ocuparem espaços. O prêmio foi um grande reconhecimento em três dimensões: a importância da História para pensar questões centrais da economia; a centralidade da agenda de gênero para a economia; a contribuição das mulheres para o avanço do pensamento econômico — celebra a também economista Luciana Servo, terceira mulher e primeira negra a presidir o Ipea.

As pesquisas da Nobel e seu protagonismo sugerem que mulheres têm contribuições importantes a dar ao mercado de trabalho, à formulação de políticas públicas, ao debate econômico, em particular. Mas são quase sempre interditadas por homens que não abrem mão do comando, oportunidades negadas e questões relacionadas às obrigações domésticas e familiares. O trabalho reprodutivo, aquele que se relaciona com casa, crianças, idosos, é invisível, pesado e sem remuneração. Tira perspectivas de prosperidade, confina mulheres à precariedade. As que terceirizam os afazeres do lar para trabalhar fora, não raro, transferem a carga para mulheres negras e/ou de baixa renda, informalizadas, num avatar do sistema colonial.

As funções de cuidado, quando remuneradas, pagam mal. Quase nunca garantem direitos trabalhistas e previdenciários. A repactuação das tarefas domésticas com divisão mais equilibrada entre moradores — hoje mulheres dedicam o dobro do tempo dos homens — emprestaria justiça e horizonte a elas. Políticas públicas de educação integral, atenção aos idosos, formalização para cuidadoras por ofício, igualdade salarial e equidade de gênero e raça nas empresas transformariam um país. Por isso manifestaram-se as islandesas no mês passado; e marcham as negras brasileiras pelo bem-viver todo mês de julho. Esse futuro guarda meninos, rapazes, homens que não farão da misoginia diversão, da violência demonstração de poder.

+ sobre o tema

Por que mandaram matar Marielle Franco? Essa agora, é a pergunta que não se cala…

Seis anos depois e finalmente o assassinato de Marielle...

Mulheres sambistas lançam livro-disco infantil com protagonista negra

Uma menina de 4 anos, chamada de Flor de...

Poesia: Ela gritou Mu-lamb-boooo!

Eita pombagira que riscaseu ponto no chãoJoga o corpo...

para lembrar

Duas mulheres numa rua íngreme

A moça iniciava a descida da ladeira e o...

Mulheres, pardos e pretos estão mais vulneráveis a passar fome no Brasil

Em mais da metade das casas comandadas por mulheres...

Cartilha ajuda mulheres a identificar sinais de perigo de violência doméstica

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania,...
spot_imgspot_img

Nath Finanças entra para lista dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo

A empresária e influencer Nathalia Rodrigues de Oliveira, a Nath Finanças, foi eleita uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo pela organização...

Brasileiras denunciam racismo em palestra, em Harvard: ‘Tem piolho nas tranças?’

Duas brasileiras relataram ter sofrido racismo em uma das palestras da Brazil Conference no último sábado, na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Naira...

Tempo para início de tratamento de câncer de mama é 3 vezes maior que o previsto em legislação

O tempo médio para o início do tratamento de câncer de mama no SUS (Sistema Único de Saúde) é quase o triplo do período previsto pela Lei...
-+=