O que é uma encruzilhada no ensino de história para as novas gerações? Essa é a pergunta que este texto tentará responder e cartografar a partir do olhar crítico e questionador de uma professora diaspórica, exúnica, provocadora, proprietária de um tridente confeccionado na encruza de três territórios fundantes de seu aquilombamento em salas de aula: a Academia, a Escola Básica e os Ativismos em movimentos sociais.
Pensar a sala de aula como encontro de territórios mapeados com perspectivas nem sempre horizontais de construção de saberes tem sido o desafio de professoras e professores que pensam a educação como prática da liberdade, como nos ensinou bell hooks, dialogando diretamente com Paulo Freire. Aqui, pretendo dialogar a partir de minhas subjetividades e dos agenciamentos de quem comigo caminhou ao longo dos últimos 30 anos. Será um exercício de memória e de reflexão sobre caminhos possíveis para que a construção de novos temas e abordagens para práticas antirracistas no território escolar seja fortalecida.
Muito se tem dito sobre caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/2003, atualizada pela Lei Federal n. 11.645/2008, na constituição de valores civilizatórios afro-indígenas que sejam formuladores de currículos, práticas pedagógicas, materiais didáticos, interações cotidianas e uma gestão escolar que promovam indicadores positivos na educação pública deste imenso território chamado Brasil.
Os estudos quantitativos e qualitativos nos remetem ao pesadelo da desigualdade educacional e à ideia de despreparo de educadoras e educadores ao enfrentamento do quadro aterrador da formação de nossas juventudes. Os números do fracasso escolar provocados pela defasagem idade-série, interseccionado por gênero, raça e valores escolares reconhecidos como primordiais nos espaços escolares são desanimadores. Valores como responsabilidade, organização, disciplina, iniciativa, tão presentes na formação proposta como sucesso, não são naturais, são construções sociais, que alimentam o desenvolvimento e manutenção das hierarquias existentes na sociedade. Hierarquias essas reproduzidas nas salas de aula. É dessa encruza que narrarei o que tenho vivido e silenciado. Ao mesmo tempo, negritando, enquanto mulher preta formada pelo movimento negro educador do Rio de Janeiro, outras possibilidades de ação e reação aos projetos de epistemicídio estrutural que enfrentamos.
Vamos às narrativas com a força das palavras que aquilombam sonhos de liberdade e alinham práticas transgressoras. Ei-las em desafio ao olhar de quem me lê: união, resistência, solidariedade, integração, força, alegria, tradição, cultura, memória, amor. Palavras que traduzem a pedagogia da escuta e do afeto como caminho investigativo sobre experiências exitosas de implementação da legislação antirracista.
Começarei esta narrativa com um encontro em novembro de 1986, ano de realização do II Encontro Estadual de Negros do Rio de Janeiro, organizado por jovens militantes, liderados por Yedo Ferreira e Amauri Mendes Pereira, ícones do Movimento Negro Educador do Rio de Janeiro. O encontro se deu em pleno Centro da cidade do Rio de Janeiro, na Avenida Rio Branco – a outrora Avenida Central, símbolo do território da modernidade que a branquitude, em seus sonhos de Casa Grande, tenta nos impor como modelo civilizatório.
A intelectual negra Azoilda Loretto da Trindade (1957-2015) estava amorosamente, distribuindo panfletos, convocando o público presente ao evento do teatro Glauce Rocha (não sei, ainda, o que rolava por lá, só sei que foi onde me foi apresentado um caminho sem volta ao associativismo negro como prática de liberdade) a se aquilombar em Moquetá, bairro de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, no Centro de Formação de Líderes, onde se formou o Grupo de Trabalho de Educação (GTE), que objetivava discussão e articulação de temas relacionados à Educação e uma nova forma de organização para a luta contra o racismo. 1986 é, então, marco temporal de minha formação exúnica, aquilombadora, diáspórica, visceral. Laroiê!
O GTE teria como fim o III Encontro de Negros (1989), no qual cada GT (Educação, Religião, Política Eleitoral, Manifestações Culturais, Sindicalismo) se estruturaria numa organização popular. Naquele encontro, os GTs se transformaram em Comissões, ainda com os mesmos objetivos do II Encontro. A coordenação geral daquele projeto se dissolveu, restando as Comissões de Educação, Religião e Política Eleitoral, que tinham vidas independentes e desarticuladas entre si.
Com a independência da Comissão de Educação, sua coordenação se viu diante do desafio de dar continuidade a um trabalho cujos resultados só seriam percebidos a médio e longo prazos, sem ressonância social (a ideia hegemônica era do problema social pelo qual lutávamos ser de classe, não racial) e sem o coletivo político que lhe deu origem. Após cerca de um ano de discussões e reflexões avaliativas, percebemos a necessidade de uma base institucional e, ainda que refratárias à ideia de mais uma entidade do Movimento Negro, idealizamos o Projeto Diálogo entre Povos, que se pretendia multiétnico e multidisciplinar.
A liderança desta construção foi feminina e negra: Azoilda Loretto da Trindade – que ancestralizou em setembro de 2015 –, Cecília Luiz Oliveira e Janete Santos Ribeiro vivenciaram um sonho atlântico entre os anos de 1993 e 2013 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, ampliando-se para todo Brasil. Com o decorrer do tempo, o Projeto Diálogo entre Povos foi assumido por duas de nós, com mais ênfase, e por uma pessoa itinerante, que formavam o núcleo duro da entidade sem fins lucrativos a serviço da luta contra o racismo nos espaços formais e não formais de educação
Acredito que o rico material produzido ao longo do Projeto Diálogo entre Povos poderá inspirar narrativas históricas promotoras da cultura de consciência negra, desde a creche até a formação de sujeitos e sujeitas radicais, capazes de atuar na construção de territórios do conhecimento aquilombador de proteção e cuidado de crianças negras e não-negras, principalmente, mas não somente. A cartografia desse material visibilizará uma experiência de vinte anos, através da qual grandes referências intelectuais negras e aliadas da luta antirracista contribuíram com palestras, textos, reflexões e agenciamentos do desejo inicial dessas três educadoras negras. O arquivo existente dessa trajetória encontra-se em negociação de transferência a um espaço público que possa ser acessado por pesquisadoras e pesquisadores com interesse em vozes negras na história da educação pública no tempo presente.
O que é uma encruzilhada no ensino de história para as novas gerações?
A sala de aula em uma perspectiva aquilombadora é um sonho em construção, nem sempre linear e tranquila. Narrarei aqui um momento de inflexão por meio da experiência com a Olimpíada Nacional de História do Brasil (ONHB), organizada pela UNICAMP. Por meio dela, há três anos, busco referências acadêmicas para atualizar e transformar minha expertise em práticas exitosas de ensino-aprendizagem em história transgressora. Trata-se de algo que me curou de um processo que quase me fez desistir da educação como prática aquilombadora. Registros dessa experiência foram compartilhados no painel “Um Oriki da equipe olímpica: ‘Atlântica” para Beatriz Nascimento”, parte da Jornada do Novembro Negro: legados e perspectivas da Lei 10.639/03, promovida pela Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros entre 4 e 6 de novembro de 2020, bem como no conteúdo veiculado no site da FAETEC em março de 2022.
Todas as minhas turmas estão interligadas a um projeto de história intitulado Cartografias Afetivas na ETEAB – Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, projeto que desenvolvo desde 2019, onde busco fazer com que as juventudes do colégio se vejam como sujeitas da própria história e da história escolar. Desde 2021, temos turmas participando da galeria Rio dos Estudantes, uma parceria da escola com o museu virtual Rio Memórias. O perfil dos estudantes da ETEAB é negro, mesmo não tendo um censo que concretize essa observação.
O que desenvolvo em sala de aula está pautado na BNCC, mesmo entendendo-a como resultante de um processo ainda em curso de silenciamento e desmonte do que visionamos ao longo dos últimos anos. A história da exclusão de nossas lutas históricas inscrita neste documento oficial ainda está por ser escrita.
Com base nisso e diante da exigência de cumprimento da Lei 10.639/2003, eu não precisaria negritar neste artigo os desafios que quaisquer abordagens antirracistas enfrentam no cotidiano escolar. Mas isso se faz necessário, infelizmente. Por outro lado, penso que isso pode ajudar outras e outros docentes a refletir sobre sua prática educadora.
Na escola onde atuo, questionamentos de responsáveis quanto às minhas práticas pedagógicas aquilombadoras me tornaram alvo do racismo institucional. Respondi a uma sindicância em janeiro de 2022, pautada no que o STF já sinalizou inconstitucional – a Ideologia da Escola Sem Partido. Sindicância posteriormente arquivada, cuja motivação foi recebida através de um canal oficial FALA.BR, conforme trecho a seguir: “Motivo: denúncia ANÔNIMA, onde se relata a ocorrência de uso e eventual tráfico de drogas dentro da UE ETE Adolpho Bloch, consumo de bebida alcoólica entre alunos e manipulação ideológica por docente identificado, conforme denúncia recebida através do Sistema FALA.BR de Ouvidorias- Fala.br”.
Tendo sido formada na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde ingressei em 1988, ano do centenário da assinatura da Lei Áurea, tenho uma militância antirracista reconhecida, além de experiência com formação de professores e estudantes antirracistas. Isso me qualifica para lidar com gestão de conflitos em sala de aula. Na ETEAB, desde 2018, existe um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB Sankofa), coordenado por uma mulher preta, doutora em Literaturas Hispânicas e professora de Espanhol, Renata Dorneles Lima, parceira dos aquilombamentos desde minha chegada. Propus e não foi acatada ainda uma formação aquilombadora liderada pelo NEAB e seus parceiros na Rede FAETEC, universidades e movimentos sociais para que futuras abordagens agressivas como as que enfrentei sejam evitadas.
Os temas tratados em minhas aulas, alvo dos ataques racistas, reforçam meu fazer pedagógico na busca da implementação da Lei n. 10.639/2003 e da Lei n. 11.645/2008, levando para a sala de aula “diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil”.
Em todas as escolas que atuei, projetos antirracistas foram implementados, todos amparados no parecer da Professora Dra. Petronilha Gonçalves. Parecer fortalecido no Colóquio “A Atualidade das Diretrizes Curriculares para o Ensino de História, Cultura Africana e Afro-Brasileira”, ocorrido em 26 de agosto de 2021, na Cátedra de Educação Básica da USP, que vem se empenhando em fortalecer um conhecimento sólido que modifique o atual quadro do ensino público, referente ao racismo estrutural em seus currículos. Tive a oportunidade de participar dessa construção em 19 de março de 2021 no FÓRUM DIGITAL – Educação, Racismo, Mercado de Trabalho. Todas as participações e atividades desenvolvidas pela Cátedra da USP ficam gravadas.
Cabe acrescentar que as atividades propostas na minha sala de aula de história, especificamente, também acabaram por dialogar com as questões do vestibular da UERJ de 2021 incluindo aí o tema da redação acerca das Fake News – trabalhado a partir da importância do conhecimento histórico como inibidor dos sofrimentos advindos da difamação e desrespeito que as Fake News provocam em seus alvos.
Considerações sobre o protagonismo juvenil nas aulas de História
Por entender minha metodologia como Aquilombamentos em sala de aula, metodologia em processo de construção, me pauto no PNLD, nas provas do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), na ONHB e na construção de uma comunidade de aprendizagem em sala de aula, onde professora e estudantes tenham voz e livre expressão. Finalizo com testemunhos que comprovam minha postura ética diante da ansiedade dxs estudantes com relação ao ENEM e do alto grau de conservadorismo provocado pelo racismo estrutural em mentes tão jovens, o que deveria ser fonte de inúmeros trabalhos pedagógicos.
“Prof, não fique triste.
O seu método de ensino nos prepara para algo mais importante que a vida acadêmica. Que possam ser formados mais professores que estimulam senso crítico em seus alunos, e que ensinem as matérias apontando a verdade dos fatos! A senhora é incrível, e inclusive fiquei muito animada quando descobri que seria você a professora de história. Sempre fiquei curiosa pra saber o que você fazia nas rodas de conversa que eu via na cisterna. Por mais mestres como a senhora!!! ❤️”
“As aulas com a Janete foram um capítulo muito importante em minha trajetória do ensino médio. Uma verdadeira lição que aprendi em relação à docência. Quando ela chegou desafiando o método convencional de se “ensinar” (que, na verdade, nada mais é do que um método que trata a educação como produto único, ignorando a individualidade de cada ser que ali está para aprender), o choque foi grande, houve embates da turma, a dúvida foi grande. Eu inclusive fui um dos que mais criticou”.
“Gosto dos encontros, pois a professora passa conteúdos não somente importantes para algum concurso público ou qualquer outra prova, mas também nos dá ideias e o livre arbítrio de expressar a opinião própria e a realizar debates, o que é muito importante para nossa oratória e nos dá a prática de reorganizar nossos argumentos”.
“Professora, suas aulas são sempre ótimas, sem exceção. A senhora me faz ter vontade de aprender às 7h30 da manhã de um sábado. Consigo entender todo o conteúdo com sua didática, seus slides e a forma como a senhora explica dando exemplos (com filmes, charges, livros etc.) e relacionando com a atualidade. Amo suas aulas e não mudaria nada nelas”.
A construção da perspectiva aquilombadora desse 2022 só foi possível pela trajetória substantiva e plural na tríade Academia, Escola Básica e Militância. Tríade esta que provoca a atualização e o movimento sistêmico por encruzilhadas do saber fazer, interagir e pensar horizontalmente sem territórios pré-definidos. Daí o medo, a insegurança e o desconhecido, a incerteza como candeeiro num caminho a ser trilhado em territórios de visão hegemônica neoliberal, racista e elitista. Sigamos tecendo a possibilidade de conjugar o verbo esperançar. Odoyá!
Assista ao vídeo da historiadora Janete Santos Ribeiro no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI04 (9° ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil). EF09HI23 (9° ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo). EF09HI26 (9° ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas). EF09HI36 (9° ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).
Ensino Médio: EM13CHS501 (Analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, tempos e espaços, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a cooperação, a autonomia, o empreendedorismo, a convivência democrática e a solidariedade). EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais). EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).
Janete Santos Ribeiro
Mestre em Educação (UFF), bacharel e licenciada em História (UFF), professora da Rede FAETEC(RJ), membra do NEAB Sankofa da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch. Intelectual da Tríade Academia, Escola Básica e Militância há 30 anos