“Nunca alcançamos a democracia”, diz autora referência do feminismo negro

O ativismo negro tem como um de seus representantes mais importantes a socióloga americana Patricia Hill Collins. Para ela, há duas dimensões que caracterizam o pensamento feminista negro: a luta pela sobrevivência do grupo, que cria esferas de influência nas estruturas sociais; e a luta pela transformação institucional, capaz de mudar políticas e procedimentos discriminatórios.

Por Maria Carolina Trevisan, Da Universa

Patricia Hill Collins - mulher idosa negra, de cabelo curto e grisalho, vestindo camiseta branca e casaco marrom- sentada sorrindo
Patricia Hill Collins (Foto: Julia Dolce/ Agência Pública)

Professora emérita do Departamento de Sociologia da Universidade de Maryland, Patricia foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia. Autora de “Pensamento Feminista Negro” (Editora Boitempo), uma das obras de maior referência para pesquisadores dessa área, ela está no Brasil para participar do seminário Democracia em Colapso?, que também terá a presença da filósofa e ativista Angela Davis.

Nesta entrevista, Patricia fala sobre racismo, resistência e organização. E alerta: nem chegamos a conquistar a democracia. Mas não é necessário que a luta seja travada de maneira depressiva. Há caminhos.

Universa – Ao olhar o passado, é possível compreender como os Estados Unidos e o Brasil foram tomados por essa onda conservadora?

Patricia Hill Collins – Acho que o que aconteceu nos Estados Unidos é que nós, na realidade, fizemos muitos progressos. Colocamos mais pessoas na escola, mais negros nas faculdades, de maneira que toda a luta contra o racismo teve vitórias significativas depois de um longo período em que houve vitórias, mas que não eram tão aparentes. Desde os anos 1950, 1960, vemos benefícios até a chegada de Barack e Michelle Obama [ex-presidente e ex-primeira-dama americanos]. Isso abriu as portas para muitos nos Estados Unidos acreditarem que estávamos numa situação pós-racial ou pós-racismo. De fato nos aproximamos, chegamos naquele estágio em que tecnicamente o Brasil esteve em toda a sua existência, que é a “democracia racial”. Mas uma democracia racial só seria possível em uma sociedade que não tem inequidade, discriminação ou estigma. Acho que essa celebração foi prematura. E, no meio da celebração, é muito mais difícil levantar questões sobre racismo, sexismo, classe, gênero.

Que consequências reais essa sensação de consolidação da democracia trouxe?

Foi natural descansar, relaxar e aproveitar os benefícios. Essa sensação, seguida pelo populismo, gerou uma reação que não é necessariamente nova, mas tem novas ferramentas. As ideias não são novas. Mas falam a uma filosofia em que um grupo diz “nós somos os escolhidos e vocês não são”. Esse pensamento, em especial, levou a consequências horríveis no passado. Não superamos o passado. Hoje, estamos vivendo um momento em que essas coisas que sempre estiveram lá estão se reorganizando. Porque a extrema direita tem tudo muito organizado e sustentado ao longo do tempo, perseguindo uma ideologia, se estabelecendo politicamente. Eles não achavam que a luta tinha acabado.

Acha que a democracia está em perigo?

Acho que a democracia nunca foi alcançada. De fato, se tivéssemos uma democracia perfeita, não haveria essa reação que estamos vivendo. Porque as pessoas que hoje estão se sentindo excluídas não teriam esse sentimento. Democracia é um objetivo que aspiramos. É uma ideia. Não vejo como você pode ter uma democracia e ao mesmo tempo conviver com tanta desigualdade social. Não vejo como ter uma democracia sem participação total da população, ela deve ser para todos. Essa é a tensão da democracia.

O que se pode esperar do momento seguinte ao que estamos vivendo? Haverá uma reação positiva ou devemos temer o futuro?

As duas coisas. Eu passei toda a minha carreira sentindo que eu poderia estar em perigo. No momento em que você tem esses dois lados, pode virar para o lado perigoso, mas também, como eu, pode desenvolver a carreira, e todas as coisas maravilhosas que acontecem. Tudo isso é diferente de quando eu era criança ou quando meus pais não podiam tomar as atitudes que eu tomei, muito menos meus avós. Você tem a possibilidade e você tem o medo, as duas coisas ao mesmo tempo. Melhor do que tentar prever é estabelecer o que precisa ser feito agora para que esse futuro exista.

Seria possível, por exemplo, apostar na eleição da ex-primeira-dama Michelle Obama como presidente dos Estados Unidos?

Por que não? Tudo é possível. Eu gostaria de ver Michelle Obama como presidente. Mas acho que temos que ser pragmáticos com o cenário maior. Há tanta gente talentosa nos Estados Unidos e no Brasil, tantos jovens. A diferença entre o que desejamos da democracia e os passos práticos que temos que tomar, mesmo que você nunca veja o seu desejo de democracia se consolidar, é que temos que acreditar que vale a pena.

As mulheres negras são, no Brasil e nos Estados Unidos, as pessoas que mais resistência mostram ao longo do tempo. Passaram pela escravidão e atualmente, aqui, são elas que velam os jovens negros vítimas de homicídio. Nunca desistem. Essa força é uma característica do feminismo negro?

Esse é o coração do feminismo negro. Vejo a sobrevivência das mulheres negras depois da escravidão como uma nova identidade de ser mulher negra. Começamos como africanas, mas você não é mais africana, você é uma mulher negra e sobreviveu à escravidão. O que isso significa? Uma longa luta. Algumas vezes pode ser boa, menos boa, mais ou menos assustadora, até realmente você conquistar segurança e proteção. Você terá que seguir lutando, pelos seus filhos. O feminismo negro tomou diferentes formas ao longo do tempo. Mas penso que é a mesma luta em todas as suas formas. Em vez de pensar que a mulher negra está na base da base da base, pense nas mulheres negras como um grupo que vem dessa tradição de luta, capaz de ver não apenas raça, não apenas gênero, não apenas classe, mas, ao longo do tempo, ver todas essas questões conectadas. Para mim, essa é a filosofia que marca a interseccionalidade. Ainda que difícil, essa luta não precisa ser depressiva.

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