Por: Juliana Satrapi
Sou branca com cabelo crespo. Quando era criança morria de raiva pelo fato de os meninos me chamarem de cabelo de bucha, bombril e vassoura de piaçava. Passei toda a minha infância prometendo para mim mesma que um dia daria um jeito neste desgrenhado.
Estudei o segundo grau em Colégio Militar, e lá as meninas tinham de usar coque. Lembro que invejava muito os coques das meninas de cabelo liso. Sendo assim, comecei a fazer escova, para dar uma disfarçada no volume. Além disso, as revistas à apresentação das/os alunas/os não eram tão exigentes. Geralmente, observavam a limpeza do uniforme e se os sapatos estavam bem engraxados.
A situação mudou quando, aos 20 anos, entrei em uma organização militar e fiquei durante três anos em regime de internato. As observações à apresentação eram constantes e diárias.
Tinha de usar bastante gel para controlar o volume e os fios que teimavam em não serem domados. Usava grampos e uma redinha para que o coque ficasse bem preso e apresentável. Não que eu gostasse de fazer isso, é uma regra prevista no regulamento de uniformes, passível de punição como transgressão militar: deixar de cumprir prescrições expressamente estabelecidas em leis, estatutos e regulamentos.
O Regulamento de uniformes prevê, em relação ao cabelo das mulheres, que os curtos podem ser usados soltos, sendo considerado curto, aquele cujo o comprimento se mantenha acima da gola dos uniformes. Já os cabelos médios e longos deverão ser usados em coque, ou presos na parte posterior da cabeça com “rabo de cavalo” ou tranças. A coloração artificial do cabelo deve ser feita com moderação, utilizando cores naturais, em tonalidades discretas. Os acessórios de cabelo permitidos são grampos, elásticos na cor preta/marrom e rede na cor do cabelo.
O pior período da revista diária era durante a manhã. Passávamos por uma verificação às 6h15. Lembro de um evento que me fez chorar de ódio. Um militar veio fazer revista no cabelo das meninas. Fez uma revista rápida nos cabelos lisos. Eu e uma amiga minha tínhamos cabelo crespo. Ele disse que nosso cabelo estava desalinhado e nos anotou, isto é, fez uma observação por escrito em um livro de controle. Essas observações negativas, dependendo da gravidade, significam a perda da liberdade de sair durante os finais de semana, único período em que tínhamos autorização para respirar novos ares. Ao final do episódio, fomos conversar com ele, pois achávamos que nosso cabelo estava apresentável. Ele disse que ia tirar a observação feita, mas que nos arrumássemos mais nas próximas vezes.
Esse mesmo homem fez a revista matinal em outro dia. Quando chegou a minha vez e da minha amiga disse que o nosso cabelo continuava desalinhado e que isso era um absurdo, inadmissível. Ao chegar no alojamento chorando, olhei-me no espelho e não vi nada de errado com meus fios. Ficamos presas lá durante o fim de semana.
Como já estava recebendo e queria me sentir aceita e bonita, comecei a alisar o meu cabelo. Ele agora estava totalmente domado. Os meus colegas de internato elogiavam e diziam que eu tinha passado pela transformação da Xuxa. Sentia-me cada vez mais aceita e bonita.
Terminado este período de três anos, entrei na Universidade. Conheci as Promotoras Legais Populares do Distrito Federal, projeto de Extensão feminista da Universidade de Brasília (UnB), e comecei a reconhecer os tipos de violência que já tinha sofrido e ainda posso sofrer.
Li o texto da bell hooks, “Alisando o Nosso Cabelo” (1). Pronto! Não tinha mais volta. Quem eu queria enganar alisando o meu cabelo? Por que precisava submeter-me a padrão para ser aceita? Por que precisa haver um padrão?
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Fonte: Blogueiras Feministas