“O que estão fazendo com Obama é puro racismo”, diz Lee Daniels

O diretor do filme “O Mordomo da Casa Branca” e “Obsessão” esteve no Brasil para divulgar seus filmes no Festival do Rio

Por: ANA LUÍZA CARDOSO

Em fevereiro de 2012, um adolescente americano negro foi morto por um vigilante branco em Sanford, no Estado da Flórida. Trayvon Martin tinha 17 anos e usava um capuz quando foi baleado por George Zimmerman, de 28 anos. O acusado alegou legítima defesa. Acreditava que o rapaz andando na rua era um criminoso. Em julho deste ano, Zimmerman foi absolvido por unanimidade pelo júri na Flórida. A decisão da Corte provocou manifestações e protestos em diferentes cidades nos Estados Unidos. “Nós regredimos na discussão sobre racismo”, disse o diretor Lee Daniels em entrevista a ÉPOCA. A morte de Trayvon Martin e as manifestações nos Estados Unidos ocorreram enquanto Daniels filmava O Mordomo da Casa Branca (The butler). O filme, que será lançado no dia 1° de novembro no Brasil, conta a história de um mordomo negro que serviu a presidentes americanos de 1957 a 1986. De Eisenhower (Robin Williams) a Ronald Reagan (Alan Rickman). O filme foi inspirado no perfil do mordomo Eugene Allen publicado pelo jornalThe Washington Post e já está entre os mais cotados para o Oscar de 2014. Interpretado pelo ator Forest Whitaker (O Último Rei da Escócia), o mordomo Cecil Gaines acompanhou as lutas dos direitos raciais e os conflitos internos na Casa Branca. O diretor Lee Daniels (Preciosa – Uma história de esperança e Obsessão) veio ao Brasil para lançar o filme no Festival do Rio e falou a ÉPOCA sobre racismo, Barack Obama e Oprah Winfrey.  

ÉPOCA – O filme mostra diferentes momentos da luta dos direitos raciais nos Estados Unidos. Há cenas de violência promovidas por grupos como a Klu Klux Klan e a própria população americana. Como os americanos se comportam agora? O cenário mudou?
Lee Daniels –
 Nós regredimos na discussão sobre racismo. Enquanto filmávamos O Mordomo da Casa Branca, Trayvon Martin foi morto. Ele era um menino negro, morto por um homem só por ter um capuz na cabeça. Quando isso acontece, parece que o que nós conquistamos está sendo tirado de nós. Eu não sei se o racismo nos Estados Unidos mudará enquanto eu viver. Mas, ao mesmo tempo, meus filhos têm amigos brancos. Eu sou gay e casado. Eles têm dois pais. Um branco, um negro. Acho que as crianças hoje veem o mundo diferente. Elas têm problemas diferentes, e eu não acho que racismo seja um deles. Na minha vida, ainda verei muitos problemas raciais. Mas quando eu olho para os meus filhos, eu acredito que talvez, um dia, isso vá mudar.

ÉPOCA – O filme termina com a eleição de Barack Obama, em 2008. O personagem Cecil encara a entrada do presidente negro com muita esperança. Depois de seis anos na Casa Branca, Obama trabalhou para mudar o quadro de discriminação?
LD –
 Acredito que se tornou politicamente incorreto discutir as questões raciais nos Estados Unidos. E o presidente Barack Obama certamente não faz essa discussão. Essa é a razão porque nós temos ainda muitos problemas na América. Porque abrir essas discussões poderia acarretar uma nova guerra civil. O que estão fazendo com Obama agora é puro racismo. Um presidente nunca foi tratado com tanto desrespeito. Isso é racismo, e essa é a origem do problema. Foi isso que fechou nosso governo. (No dia 1° de outubro, cerca de 800 mil funcionários públicos receberam licença do trabalho. Parques e museus no país foram fechados. A paralisação ocorreu porque democratas e republicanos do Congresso dos Estados Unidos não chegaram a um acordo sobre o financiamento dos gastos públicos).

ÉPOCA – Pelo que os americanos hoje lutam?
LD –
 Temos as mesmas lutas dos outros países. O mundo todo tem problemas com discriminação. É um drama internacional. Assim são as pessoas. Elas discriminam para se sentirem melhores com elas mesmas. Essa insegurança é o que alimenta a homofobia, o racismo e o sexismo.

ÉPOCA – Por falar em insegurança e lutas, os organizadores do Festival do Rio tiveram de cancelar as sessões no Odeon, um cinema do Centro da cidade porque houve manifestações…
LD –
 Ah, então foi isso? Na noite passada eu quis sair para assistir Obsessão, que eu amo tanto, um filme que as pessoas amam ou odeiam. Não é como “O mordomo”, que todos ficam “Oh!”. Eu não sabia que já estava em cartaz aqui. Quando descobri, fiquei surpreso, pedi para vê-lo e não me deixaram. Disseram que não poderiam me proteger, que havia protestos e violência pela cidade. Eu queria ir de qualquer jeito, mas não me deixaram. Disseram que era perigoso. O que está acontecendo? 

ÉPOCA – Desde junho, os brasileiros têm ido a rua protestar contra corrupção, por melhores condições de vida e justiça. Naquele dia, professores lutavam por melhores salários.
LD –
 Tem corrupção no seu governo? Você acha que as manifestações vão ajudar a melhor algo? 

ÉPOCA – Espero que sim.
LD –
 Um governo que não protege as pessoas não serve para nada. Ei, essa é a minha entrevista e eu sentado aqui aprendendo sobre o Brasil. Então me diga: tem pessoas suficientes na rua prontas para lutar? Ou o movimento está encolhendo?

ÉPOCA – Desde junho, encolheu muito. Muitos manifestantes estão com medo dos excessos de violência, de ambas as partes, tanto da polícia como de black blocs.
LD –
 Nós precisamos de heróis. Esse é o sentido dos movimentos a favor dos direitos civis. Precisamos de pessoas dispostas a morrer por liberdade. Esses que estão nas ruas agora, no Brasil, são heróis. Eles estão dispostos a serem perseguidos pelo governo. Porque o governo deve estar olhando para todas essas pessoas que estão nas ruas. Mas vamos voltar ao mordomo. 

 

ÉPOCA – Em O Mordomo da Casa Branca, Oprah Winfrey atua como Gloria, mulher de Cecil. Esse é o terceiro filme estrelado por ela. Como foi trabalhar com Oprah?
LD –
 Oprah é uma atriz. Ela me disse uma vez que atuar é como pedalar uma bicicleta, velha e enferrujada. Leva um momento para pegar um ritmo, mas depois é só andar. Durante as filmagens, eu a achei bem frágil, nervosa, humilde, crua e muito fácil de trabalhar. Ela é uma grande figura e quando chegava ao set, vinha com o motorista, muito nervosa. Oprah Winfrey é bilionária e estava comendo junto à equipe. Aguentava a comida horrível dos sets, o milho nojento de dois dias. Ela se tornou um de nós. Mas é claro, quando ela deixava o set, voltava a ser a Oprah que todos conhecem. Estou muito orgulhoso do seu trabalho.

 

ÉPOCA – E a preparação para o papel dela? Ela fuma e bebe muito durante o filme…
LD –
 Tive que ensiná-la a fumar. E se fosse por mim, a deixaria só de calcinha junto ao amante dela no filme. Mas quando pedi, ela bateu o pé e disse “Eu não vou fazer isso”. A minha intenção era fazer com que esquecessem quem ela foi. Para isso, tive que fazer diversas mudanças. Preparei as roupas, a fiz xingar, beber e fumar. Tudo para que as pessoas olhem para ela e digam “Essa não pode ser a Oprah”.

ÉPOCA – E quanto a Forest Whitaker?
LD –
 Forest está em outro nível. Ele é incrível. Primeiro, como ser humano. Ele é humilde, um ator ganhador do Oscar que chega ao trabalho sem nenhuma vaidade. Somente para servir a minha visão. Ele dizia “Sim, Lee, como eu posso ajudá-lo?”. Era tão humilde que aumentava o meu orgulho em ser afrodescendente. Porque ele é um ser maravilhoso.

ÉPOCA – O filme tem elementos que não estavam na reportagem do jornal sobre o mordomo. Qual foi a sua inspiração para essa história?
LD –
 Minha família. Muitos membros da minha família lutaram nos movimentos a favor dos direitos civis. Minha avó precisava apresentar a identidade de um homem branco para conseguir votar. Eles foram heróis. Eu não sei se sou homem suficiente para morrer por uma causa. Eu morreria pelos meus filhos. Eu tomaria um tiro por eles, mas não por uma causa cega a favor do voto. Não, podem votar, nem quero mais, não quero morrer. Meus antepassados permitiram que eu estivesse aqui agora.

ÉPOCA – O Mordomo na Casa Branca é um dos filmes mais cotados para o Oscar de 2014. Como você enxerga essas indicações?
LD –
 Esstou cansado de responder a essa pergunta, me incomoda muito. Não me sinto confortável. Porque me faz pensar nisso e eu não gosto de pensar sobre isso. Se eu pensar muito, e não for indicado, ficarei magoado. Eu aprendi isso com o meu primeiro filme, “A última ceia”. Muita gente me disse que eu ganharia um Oscar, mas não ganhei nada. Só fiquei chateado. Disseram o mesmo sobre “Preciosa” antes do filme ganhar prêmios, mas naquela época eu me bloqueei. Minha recompensa foi falar sobre meninas que são abusadas sexualmente. A minha maior recompensa com O Mordomo na Casa Branca é mostrar às pessoas o movimento a favor dos direitos humanos. Observar seus antepassados morrerem, assistir eles serem espancados. Muitas pessoas que estão vivas e vivenciaram isso vieram chorar nos meus braços. Não existe prêmio maior. É claro que eu quero um Oscar. Porque significa que as pessoas verão o meu filme. Eu sou um artista e quero que todos assistam aos meus filmes. Mas só terminá-lo já é um acontecimento. Quero fazer filmes que toquem as pessoas. Se você quiser fazer filmes só para concorrer ao Oscar, pode desistir. Não funciona desse jeito.

  

 

Fonte: Época 

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