Já é sabido que as meninas apresentam um desempenho escolar superior ao dos garotos no Brasil. Costuma-se sugerir como explicação, embora nem sempre com o devido embasamento, que a escola valorizaria comportamentos usualmente expressos pelas meninas, tais como dedicação, obediência e disciplina. Esses, por sua vez, seriam cultivados pelas famílias ou, mais amplamente, constituiriam “algo que vem de casa”. Além de isentar o papel da escola na produção do sucesso escolar das meninas, essa noção lança possíveis explicações para o buraco negro da “família”.Afinal, quais processos de fato acontecem no interior da família que nos ajudariam a compreender a formação de “boas alunas”?
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Essa indagação estimulou nossa equipe de pesquisa a realizar um estudo qualitativo com oito famílias de camadas populares urbanas, no município de São Paulo entre 2011 e 2013, orientado pela professora Marília Carvalho da Faculdade de Educação da USP. Recentemente, publicamos um artigo intitulado O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar? (CARVALHO, SENKEVICS & LOGES, 2014), que pode ser acessado gratuitamente clicando aqui. Neste artigo, discutiremos alguns resultados dessa pesquisa.
Nas oito famílias estudadas – que abarcavam um total de 14 meninos e 12 meninas entre 6 e 18 anos de idade – notamos alguns contrastes entre um discurso parental que preconizava o tratamento igualitário entre seus filhos e filhas, mas que, na realidade, não se efetivava em práticas igualitárias. Trocando em miúdos, embora fosse anunciado pelas mães que as regras eram idênticas para meninas e meninos, o cotidiano das crianças e jovens apontava noutra direção. E isso não é todo mau! É preferível a presença de um ideal igualitário a uma desigualdade enunciada.
E o que esse “cotidiano sexuado” das crianças e jovens indicava, a respeito das meninas, eram quatro principais aspectos: sobrecarga na divisão dos afazeres domésticos, menor disponibilidade para o lazer,maiores restrições no acesso à rua e maior participação em atividades extracurriculares. Destrincharemos cada um desses pontos nos próximos parágrafos; em seguida, discutiremos os possíveis efeitos dessas práticas sobre a escolarização das moças.
Refletindo a divisão sexual do trabalho, a qual imputa às mães a maior responsabilidade pela execução dos afazeres domésticos, as jovens garotas também se envolviam com a manutenção da unidade doméstica. Os homens apenas “ajudavam” e olhe lá! Já as garotas eram cobradas pelas suas mães a participarem da arrumação da casa, lavagem da louça, cuidado dos irmãos menores etc. Esperava-se delas iniciativa para colaboração nos serviços domésticos, ato que se naturalizava em concepções de feminilidades que ratificavam essas discrepâncias. Mesmo que contestassem tais imposições, as garotas pareciam um tanto desarmadas para efetivar mudanças.
De modo contrário à sobrecarga de tarefas domésticas, as meninas encontravam poucas opções de lazer. Nessas famílias de camadas populares, que habitavam em residências de pequeno porte e com baixo acesso a bens culturais, as alternativas de lazer e entretenimento eram parcas: uma televisão, poucos brinquedos e, às vezes, computador e videogame (cujo manuseio era quase sempre controlado pelos meninos). Retidas no ambiente doméstico, em razão dos “perigos” da rua, as garotas pareciam vivenciar rotinas entediantes. Seus irmãos, por outro lado, saíam à rua com frequência e eram menos cobrados por uma eventual participação nos serviços de casa. Por mais que nós tenhamos nos reforçado para enxergar exemplos que rompessem com determinados binarismos de gênero, eles pareciam funcionar a todo vapor em aspectos como esses que discutimos.
Além disso, comprometidas com os afazeres domésticos e tendo à disposição um leque sensivelmente menor de opções de lazer, as moças passavam boa parte do seu dia confinadas no interior de suas residências. Não que não houvesse riscos envolvendo a presença dos meninos nas ruas (tais como drogas e violência), porém, esses perigos ganhavam mais peso quando se endereçavam às garotas. Medo de que pudessem sofrer algum tipo de violência, de engravidar, de serem mal vistas etc., era evocado para justificar as maiores restrições sobre a liberdade das jovens. Dois pesos, duas medidas? Talvez. Evidentemente, não eram os genitores os “culpados” por isso – eles, no fundo, estavam fazendo aquilo que achavam melhor para suas filhas. O contexto, como um todo, é carregado de problemas e, ademais, as concepções de feminilidades cultivadas pelos familiares, vizinhos, colegas e amigos, bem como pela sociedade em geral, não contribuíam para a emancipação das garotas.
Ademais, notamos que tanto meninos quanto meninas estiveram envolvidos/as em atividades extraescolares, praticadas no contraturno em instituições beneficentes. Menos orientadas por gênero, a matrícula nessas entidades era mais influenciada pela condição socioeconômica das famílias e pelo nível de informação a respeito da disponibilidade e importância de tais atividades extracurriculares. Diferenças entre os sexos surgiram no tipo de atividade desempenhada: ao passo que os meninos usualmente se viam envolvidos em práticas esportivas, poucas meninas eram matriculadas com esses fins. Além do mais, as garotas pareciam potencializar os fins educativos de tais instituições e usavam-nas para fazer as lições de casa ou, em alguns casos, frequentar atividades ligadas a igrejas evangélicas, muitas delas próximas do formato escolar.
Em conjunto, esses resultados nos sugerem dois caminhos para pensar a relação entre a socialização familiar e a escolarização de meninos e meninas.
O primeiro deles diz respeito à proximidade entre as práticas desempenhadas pelas meninas em casa e aquilo que se espera de alunos/as na escola. Disciplina, obediência, responsabilidade – qualidades expressas, por exemplo, no compromisso com os afazeres domésticos, com a submissão a normas rígidas e no controle sobre o balanço trabalho-lazer – tendem a estimular posturas “de alunas”, para além de posturas “de meninas”. Afinal, regras existiam tanto na escola quanto em casa. E a criança que vivenciava, obedecia ou, por ventura, questionava tais normas, é a mesma nos dois ambientes. Assim, a criação das meninas no ambiente doméstico parece remeter à construção de feminilidades potencialmente afeitas às expectativas escolares.
Ou, em nossos dizeres: “a socialização de gênero no âmbito familiar favorece nas meninas e não nos meninos o desenvolvimento de comportamentos frequentemente desejados pelas escolas, tais como a disciplina, a organização e a obediência (ou formas de desobediência menos visíveis)”(CARVALHO, SENKEVICS & LOGES, 2014, p. 732).
Soma-se a essa hipótese uma segunda postulação: o contexto desigual, com ares de opressão de gênero, que as garotas experimentavam cotidianamente pode estar indicando que, em comparação com o ambiente residencial e familiar, a escola seja um espaço menos sexista. Não que não haja sexismo ou machismo nas instituições escolares – do contrário não haveria tantos estudos sobre machismo na escola. Por outro lado, é possível que a escola as discrimine menos que as demais esferas pelas quais meninas e mulheres passam em sua vida (CHARLOT, 2009). Dessa maneira, o sucesso escolar das garotas seriapotencializado pela escola, um espaço em que, pelo menos, elas encontrariam mais oportunidades de colherem os frutos de sua própria dedicação e esforço. É patente, inclusive, que essa e outras pesquisas têm apontado que, na escola, as meninas encontram alternativas de lazer, sociabilidade e até mesmo alguma liberdade: atributos dos quais elas estão usualmente privadas no ambiente familiar.
Em continuação ao trecho supracitado, completamos que, “ao mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola tenha significados diferentes para a maioria das garotas e garotos destes setores, uma vez que elas têm muito menos oportunidades de circulação, sociabilidade e estímulo” (CARVALHO, SENKEVICS & LOGES, 2014, p. 732).
Encerramos este texto colocando algumas perguntas que merecem mais reflexões: quando atribuímos a meninas e meninos (sejam nossos filhos e filhas, alunos e alunas etc.) “papeis” distintos e, a partir deles, expectativas diferenciadas sobre seu cotidiano, suas práticas de trabalho ou de lazer e sobre seu futuro, que valores estamos cultivando? Talvez não estejamos cientes de que, ao darmos uma louça para uma menina lavar e uma bola para um garoto chutar, estamos mais do que comprometendo crianças de sexos diferentes a rotinas igualmente distintas. Estamos, de fato, construindo o seu gênero e, nisso, modelando de pouquinho em pouquinho que mulheres e homens eles/as irão se tornar: na escola, na família, na rua, no trabalho…