A voz do rap também é feminina

Artigo produzido por Redação de Geledés

Mulheres conquistam espaço e lutam juntas contra o machismo no mundo da música

Por Isabella Vilela para o Portal Geledés 

Bebel Du Guetto, Juliana Dorotea, Alexandra Mércia e Yas Werneck (Fotos: Reprodução Redes Sociais)

Igualdade, reconhecimento e respeito. Essas são apenas três das inúmeras reivindicações que as vozes femininas cantam nos palcos da cena do rap carioca, um gênero predominantemente masculino e, muitas vezes, machista, que cada vez mais conta com a presença de mulheres, cansadas de serem meras coadjuvantes e dispostas a combater qualquer tipo de preconceito ainda existente.

Durante séculos, em qualquer campo, a mulher foi e muitas vezes ainda é considerada frágil. Os homens, por outro lado, vistos como fortes. E no rap, um estilo resistente, que associa protesto em forma de música, não foi diferente. No início, na década de 90, quando o ritmo ganhou espaço na indústria fonográfica brasileira, era raro vê-las nos palcos. E quando estavam lá, quase não se notava a identidade feminina, já que, para não serem julgadas, era necessário que estivessem vestidas com roupas largas e masculinas. Mas aos poucos esse pensamento foi dispensado.

E há quem nunca tenha se rendido a esse conceito. Veterana no mundo do rap e hip hop, Izabel Cristina, de 30 anos, mais conhecida como Bebel Du Guetto, jamais escondeu seu estilo, por mais que isso incomodasse alguns. A maranhense, criada desde os 10 anos na Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro, relembra o início da carreira, quando participava de batalhas de rap, categoria em que dois rappers improvisam rimas, geralmente um contra o outro, e o público decide o vencedor. “Meus shorts curtos viravam argumento para os homens tentarem me agredir e me diminuir”.

Bebel Du Guetto se apresentando no evento Hip-Hop
Santa Marta (Foto: Reprodução Facebook)

Os ataques pessoais nunca fizeram Bebel pensar em desistir. Pelo contrário, foram inspiração para escrever músicas como “Beijo na Boca”, no Youtube desde 2007. O hit divertido e dançante fala sobre algumas atitudes machistas que são consideradas normais no meio masculino. “Sempre tive muitos amigos homens e acabava escutando coisas desagradáveis sobre as mulheres. Machismo não é só agressão física. Isso eu vi minha mãe passar em casa, vi a vizinha”, lembra a maranhense, que tem como principal referência a cantora Elza Soares, um símbolo de mulher guerreira.

Há 12 anos no mundo do rap, Bebel admite que houve uma evolução, pois as mulheres estão se impondo cada vez mais. Porém, ainda existe uma dificuldade para divulgar os trabalhos femininos. A cantora explica: “Os próprios produtores não investem na gente, fazem questão de tratar nosso trabalho como se fosse inferior e deixar o dos caras melhores. Eu não tenho parcerias, apenas o meu público. Os homens conseguem isso de forma mais fácil”. E finaliza com um conselho: “As mulheres precisam ser mais unidas e divulgar o trabalho das outras”.

Pensando justamente em união e com intuito de valorizar o papel da mulher, a produtora cultural e rapper Juliana Silva Dorotea, de 23 anos, criou em 2013, junto com uma amiga, o projeto Rima Q Age. Premiada pela Secretaria do Estado de Cultura do Rio de Janeiro e bem conhecida na cidade de Volta Redonda, a iniciativa consiste em divulgar trabalhos femininos em vários campos como o da música, o da dança e o do grafitti e, por meio de oficinas, ensinar estratégias e encorajar outras meninas.

Mesmo com as oficinas dando certo, Juliana continuava sendo uma das poucas mulheres a se apresentar em eventos de rap em sua cidade. Vendo a dificuldade e a falta de coragem que algumas tinham em seguir essa carreira, a rapper desenvolveu, em 2015, outro projeto, chamado Rimah Sistah, que ensina técnicas de composição, rima, práticas de palco e estúdio para meninas a partir de 15 anos.  “Começou na minha casa, mas cresceu e precisei fazer parceria com a fundação cultural da cidade. Nesse projeto ensinamos técnicas de rap para quem deseja se tornar artista ou frequentar rodas de rima”. Além da música, as oficinas ajudam na escrita e na autoestima das adolescentes.

Juliana (esquerda) durante uma oficina de Noções de Gravações,
realizada pelo projeto Rima Sistah. (Foto: Reprodução Facebook/
G. Rodrigues Fotografia)

Ligada ao rap desde pequena, Juliana reconhece que para combater o machismo é preciso incentivá-las a não desistirem. “É como o futebol feminino: patrocinadores, produtores, mídia e público não depositam a mesma atenção ao trabalho das mulheres, por mais talentosas que sejam. Logo, é muito importante que elas produzam e se envolvam em todas as áreas possíveis”. Por isso, além de estar envolvida em projetos pessoais, como seu trabalho mais recente, Cypher Egregora, a rapper elabora, coordena e ministra as oficinas.

Muitas mulheres são a prova de que esses projetos dão êxito. Uma delas é Alexandra Mércia Amorim de Araújo, de 21 anos, produtora cultural e MC – mestre de cerimônia. Hoje, conhecida pelo nome artístico M’ Ale, ela conta que através do coletivo FALA – Fábrica de Apoio a Linguagem Artística, se descobriu, já que sempre gostou de escrever, mas era insegura quanto à voz, e apesar de frequentar rodas de rima desde os 16 anos, nunca tinha se arriscado a pegar no microfone. “Eu mesma me sabotava. Mas, em 2016, mostrei uma música para as meninas do coletivo e fui incentivada a cantar. Foi então que tudo começou”.

Alexandra se apresentando no Rap Free
Jazz, evento que acontece em Parque
Fluminense, bairro da cidade de Duque
de Caxias, Rio de Janeiro. (Foto:
Reprodução Facebook)

A iniciativa tem como objetivo disseminar cultura na Baixada Fluminense, região carente de projetos com esse propósito. Os eventos geralmente são realizados nas cidades de Belford-Roxo e Duque de Caxias. Alexandra, que participa do coletivo desde 2015, explica como funciona: “Abordamos a cultura em geral, não só na música. Queremos incentivar e fazer a pessoa enxergar o próprio talento. Mostramos arte por meio de pinturas, poesias, instrumentos… Acontecem apresentações femininas e masculinas, trocas de livros e CDs”.

Quando os dois sexos têm o mesmo espaço, é mais fácil desconstruir a imagem de que o trabalho feminino é mais fraco. Alexandra, que tem muitas amizades no ciclo masculino, reconhece que a maioria dos homens acha normal não acompanhar a produção das mulheres. “Alguns deles ainda têm preconceito. Não chegam a ouvir para saber se é bom. Principalmente na Baixada Fluminense, é muito difícil ter esse apoio. São muitas barreiras”. Mas, nem por isso ela se deixa desanimar e admite que já estão acontecendo muitas mudanças. “As meninas estão botando mais a cara. Assim, eles vão aceitando e gostando. Nós precisamos ter iniciativa e não apenas esperar acontecer”.

Yas Werneck se apresentando para crianças do
CIEP Juscelino Kubitschek, em Manguinhos,
comunidade do Rio de Janeiro. (Foto: Reprodução
Instagram)

E foi manifestando sua indignação após assistir uma apresentação completamente machista em um evento de rap, em 2010, que Yasminie Siqueira Werneck de Almeida tomou iniciativa e entrou para o mundo da música. “Um dos homens presentes estava cantando. As músicas dele colocavam as mulheres para baixo e as tratavam como objeto. Aquilo me deixou com raiva. Fui pra casa e escrevi uma resposta para o que ouvi, fiz uma música inteira, até com refrão. Mostrei para uma amiga que também estava naquele dia, ela gostou e sugeriu montarmos um grupo com uma terceira menina. Nós cantamos juntas até 2012”.

Atualmente, com 25 anos, Yasminie que se tornou Yas Werneck, leciona matemática e segue fazendo carreira solo. Ela admite que muitas vezes, quando sobe no palco, ainda encara expressões negativas por partes dos homens que estão no evento. “Muitos deles fazem uma cara não muito agradável, como se eu fosse cantar uma música melosa, apenas pelo fato de eu ser mulher. Então, já começo com uma letra forte, para mostrar que eu faço rap e tenho que ser respeitada da mesma forma que eles consideram outros homens”.

Toda essa imposição, não para ver quem é melhor, mas em busca de respeito e reconhecimento, tem feito o trabalho dessas mulheres ser mais valorizado e conhecido. Yas, que antes de entrar para o mundo do rap cantava apenas para a família, hoje se orgulha ao falar de seu clipe “Coméki”, disponível YouTube há seis meses, que conta com mais de 30 mil visualizações. “Me sinto privilegiada por ter alcançado esse número sem precisar pagar, e sim porque as pessoas realmente gostaram da minha música”.

Mas, não são só as visualizações que agradam Yas. A rapper destaca que seu principal objetivo é passar conhecimento adiante, não importa para quem seja. “Eu estudo muito e sempre estou com pessoas que me enriquecem sobre o rap e o hip hop. Não sou rapper porque quero ganhar dinheiro, mas também não levo como hobbie. Levo tão a sério que não faço pelo valor financeiro. Já cheguei praticamente a pagar para cantar”.

Novatas, veteranas, negras, brancas, mães, professoras, rimando ou misturando estilos musicais, as mulheres do rap resgataram e deram destaque à identidade feminina. Cada uma com seu estilo. Livres, sem restrições e fugindo de estereótipos, sobem ao palco e exibem trabalhos incríveis, mostrando o que cada uma tem de melhor, respeitando, encorajando as outras e buscando o tão almejado reconhecimento.

 

*Isabella Vilela é estudante de jornalismo

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