A quem serve a oposição entre judeus e negros?

Não são poucas as vezes que no debate racial – judeus e negros – são colocados em campos opostos, o que acontece por diversos motivos e cirunstâncias históricas. No debate sobre relações raciais é constante a associação direta entre judeus e branquitude. Acontece de tal forma porque uma das bases do racismo brasileiro está alicerçada na ideologia do embranquecimento, ou seja, que vivemos em uma sociedade marcada pela hierarquia e desigualdades sociais e racistas no que diz respeito, sobretudo, aos negros e aos indígenas. Sendo assim, o judeu brasileiro, em sua grande maioria, é considerado fenotipicamente branco e, portanto, no campo material e simbólico é beneficiado pela estrutura de funcionamento do racismo à brasileira.

Ainda que a maior parte dos judeus que aqui vivem possa ser considerada branca, as formas como são associados à branquitude nos debates sobre relações raciais se modificam dependendo do campo político em que se anuncia o discurso. Contudo, não são poucas as vezes que nós judeus somos “usados” nesse debate para legitimar discursos racistas, fascistas e até mesmo nazistas. No campo da extrema direita, muitas vezes “os judeus” têm sido usados para dizer “nós não somos nazistas, temos judeus junto com a gente” como tem recorrentemente acontecido nos discursos bolsonaristas. O fato é que opor judeus a negros desloca o debate sobre as estruturas racistas que realmente importam e produz, também, uma falsa narrativa que não considera as diversas articulações na luta antirracista em que negros e judeus estiveram juntos no passado e no presente, ou seja produz um uso oportunista dos judeus e do antissemitismo dentro de uma pauta da direita (contra o movimento negro) e por si só antissemita pois faz uma seleção arbitrária da história do antissemitismo.

Como exemplo disto, nos Estados Unidos, podemos afirmar a ampla e decisiva participação de judeus no Movimento pelos Direitos Civis Negros – a metade dos advogados de defesa dos militantes durante a década de 1960 era judeu e ativistas como Abraham Joshua Heschel, que marchou de braços dados com Martin Luther King Jr. em março de 1965 e Andrew Goodman, assassinado pela Ku Klux Klan em 1964 por apoiar os direitos civis dos negros, são exemplos proeminentes. Pode se dizer o mesmo do contexto de luta contra o apartheid na África do Sul. Entre os acusados no Julgamento de Rivonia (entre 1963 e 64), no qual dez líderes da Aliança do Congresso foram acusados de sabotagem e foram submetidos a uma condenação à morte, entre eles Nelson Mandela, cinco eram judeus brancos. O próprio Mandela afirmou que “os judeus eram mais abertos que os outros brancos, quando se tratava de segregação racial e da política do país”.

No Brasil, um olhar mais atento pode identificar diferentes atores da luta antirracista que são judeus. É possível também afirmar os diversos momentos em que judeus e negros estiveram juntos no combate ao racismo religioso que se manifesta fortemente contra os terreiros e religiosidades de matriz africana. Ainda que as religiões africanas sejam pouco representativas nas declarações dos últimos Censos – o que em si pode ser feito do racismo –, concentram, de longe, a maior parte das denúncias de crimes de intolerância já registrados.

Ao contrário do que dizem os fatos e história, a reiteração da narrativa que opõe judeus e negros aparece no texto de Antônio Risério na Folha de S. Paulo publicado dia 15/01. O texto produz a ideia da presença de um movimento antissemita negro e defende, ao mesmo tempo, a existência do racismo de negros contra brancos.

O racismo no Brasil é um sistema, uma estrutura de produção de desigualdade que abrange três dimensões: a crença na ideia de raça, a discriminação e a situação persistente e estrutural de desigualdade entre brancos e não brancos. E aqui é importante fazer uma distinção ou diferenciação conceitual entre preconceito racial, discriminação racial e racismo.

O antissemitismo faz parte daquilo que hoje no Brasil podemos pensar como preconceito racial, pois somos frequentemente submetidos à homogeneidade do grupo, à suposição de qualidades internas relativas a moralidade por sermos judeus, etc. Sim, o ataque antissemita pode vir de todos, e isso inclui brancos e negros, mas não podemos dizer que no Brasil tal fenômeno seria da mesma ordem do racismo anti-negro. Ou seja, o preconceito que sofremos, que certamente é de ordem racial, não se transforma no Brasil numa desigualdade e perda de direitos, diferentemente da Alemanha Nazista onde o antissemitismo estruturava e organizava o Estado-Nação. Sofrer preconceito racial não é o mesmo que estar sob a égide de uma nação em que o racismo organiza as relações políticas, econômicas, culturais e jurídicas.

Por isso também não consideramos a discriminação a brancos como racismo – o que sim, pode acontecer. Manifestações como as citadas no texto do Ríserio podem se caracterizar como violência ou até mesmo “revide”, onde brancos são desestimulados ou impedidos de entrar em bairros ou estabelecimentos negros. Mas os brancos não deixam de seguir em vantagem no mercado de trabalho, nos índices de saúde e escolaridade porque não são bem vindos em locais de sociabilidades negras. Uma das razões para fazer essa distinção é não usar o mesmo termo para expressar atitudes individuais que possam ter resultados e consequências completamente distintas, exatamente porque os sujeitos em uma sociedade marcada pela desigualdade histórica de raça não têm o mesmo poder.

Essa concepção, que envolve conceitos que vêm sendo construídos de longa data por diferentes atores do campo intelectual, tem sido seriamente trabalhada e compartilhada no campo das Ciências Humanas e define o racismo como um sistema de dominação. Caminham lado a lado os processos de colonização e a expansão do capitalismo, bem como a ideia de pureza racial que levou ao extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e resultou, portanto, na hierarquização dos povos europeus em relação a outras populações. Desta forma, o racismo é mais especificamente entendido como uma construção ideológica, que começa a se esboçar a partir do século XVI com a sistematização de ideias e valores construídos pela civilização europeia ao entrarem em contato com a diversidade humana nos diferentes continentes, e se consolida com as teorias científicas em torno do conceito de raça no século XIX. O racismo, tal qual se manifesta hoje, é fruto das teorias racistas produzidas pela Ciência moderna.

No entanto, a compreensão de Risério sobre racismo esquece – ou ignora – justa e exatamente o que define o racismo: as relações hierárquicas e assimétricas construídas historicamente que fazem com que indivíduos ocupem lugares diferentes, superiores ou inferiores, na estrutura social. Ao fazer uma falsa simetria, o autor iguala agressões individuais e casos isolados com estruturas de poder econômico, político e jurídico. Exatamente por isso a necessidade de diferenciar racismo, preconceito racial, injuria racial e discriminação. Tais conceitos são produzidos para que não se iguale o ódio que muitos de nossos antecedentes judeus tinham dos alemães após perder grande parte de suas famílias na guerra, com o ódio que os alemães amparados em um Estado nazista tinham dos judeus. Assim como não é possível igualar as consequências de ser chamado de branquelo com a de ser nomeado de negro ladrão por indivíduos já favorecidos pela estrutura social.

Conceitos à parte, já que o autor se exime de usá-los de forma fundamentada, chama atenção o esforço discursivo de Ríserio apenas para afirmar que negros podem ser racistas e discriminar brancos. Uma investida desnecessária, sobretudo no atual contexto de acirra- mento ideológico e polarização. O antisemitismo é parte do racismo. Não é possível dissociar uma atitude da outra. Quem luta contra o antissemistismo, mas não defende os grupos sociais racialmente discriminados (indígenas e negros) não amplia o debate democráticos, apenas polemiza. E causa estranhamento, que um pesquisador que se proponha a discutir sobre a temática racial desconheça a hegemonia que opera neste sistema: quem está seriamente implicado com o campo das relações raciais se compromete com o fim do racismo anti-negro e não com sua manutenção. A pergunta que fica é: qual a intenção do autor, em um país em que morrem em media 75 jovens negros assassinados por dia em afirmar tão veementemente que negros podem ser racistas?

Em um contexto em que negros compõe 75% das pessoas que vivem em situação de pobreza, em que menos de 1% dos homens brancos deste país ganham mais que todas as mulheres negras juntas (IBGE), e que 75% dos jovens assassinados pela polícia são negros (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) é um imperativo ético combater este tipo de discurso.

Portanto nós, Judeus pela democracia, afirmamos nossa posição antirracista que coaduna com os Movimentos Negros Brasileiros ao denunciarem, historicamente, o racismo estrutural como sistema de poder, e portanto a impossibilidade do racismo reverso.

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