Como descobri o racismo em Chiquititas 20 anos depois

Quem foi criança nos anos 1990 e 2000, muito provavelmente foi fã da novela Chiquititas. Eu também fui. E já adianto que não vejo nada de mau nisso. Gravada na Argentina e exibida pelo SBT, a história dos pequenos órfãos marcou toda uma geração.   

Há alguns anos, uma nova versão da trama passou a ser produzida e veiculada pela emissora. Ao recordar o nome das personagens do Orfanato Raio de Luz, dei-me conta de uma coisa: os irmãos Pata e Mosca, dois personagens inesquecíveis, são os únicos que têm como apelidos nomes de bichos. Nós nem sabemos os seus verdadeiros nomes. Não preciso dizer a vocês que eles são duas das poucas crianças negras da trama.  

Daí vem a questão? Por que justamente esses personagens não foram tratados pelos nomes próprios como as demais crianças? Além disso, temos uma agravante no apelido da menina, já que crianças negras que possuem os lábios volumosos, característica típica e fenotipicamente da origem africana, são muitas vezes alvo de bullying, com apelidos que remetem ao animal, sendo constantemente chamadas de “bico de pato”, por exemplo. Eu mesma passei por isso na infância.  

Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das mais importantes intelectuais negras, já ensinou: “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido…ao gosto deles”. De uns anos para cá, aliás, muito tem me incomodado o fato de personagens vividos por pessoas negras, especialmente crianças, frequentemente terem apelidos, ao invés de nomes, no universo da dramaturgia. Acho que é porque a frase de Lélia não para de ecoar na minha mente.  

Há quatro meses, inclusive aqui nesta mesma coluna Negras que Movem, falei sobre a novela “Salve-se quem puder”, então exibida na faixa das 19h da TV Globo, e um dos assuntos foi justamente o fato de o personagem interpretado pelo ator mirim Ygor Marçal “chamar-se” Mosquito. No texto em questão, destaquei a insistência que as tramas (quase que unicamente escritas por pessoas brancas) têm em dar apelidos a crianças negras. Frisei, ali, que já perdi as contas de quantas vezes meninas e meninos negros não tiveram nomes próprios em cena. São quase sempre Mosquito, Pirulito, Mosca, Pata, Buscapé… 

Como muitas crianças da minha geração, eu fui espectadora assídua das várias temporadas de Chiquititas. Admiro muito, inclusive, o trabalho dos atores Aretha Oliveira e Pierre Bittencourt, que deram vida aos personagens Pata e Mosca na versão original da trama, e quero deixar registrado aqui que este artigo de modo algum quer desmerecer a importância do folhetim para os atores e fãs. 

Mas, hoje, mais de 20 anos depois, é inevitável reconhecer que percebo esse viés racista que permeia o enredo deste e de tantos outros folhetins. Sei que muitas pessoas afirmarão que esses apontamentos são mimimi, mas não são. O nome é o primeiro elemento da nossa personalidade. A partir do momento que ele é trocado por apelidos vários, às vezes jocosos, é a identidade da criança que passa a ser desqualificada. E a dramaturgia, a cultura, não deve corroborar com isso. Não mais. 


Minibio

Jaqueline Fraga é escritora, jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco e administradora pela Universidade de Pernambuco. Apaixonada pela escrita e pelo poder de transformação que o jornalismo carrega consigo, é autora do livro-reportagem “Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho”, finalista do Prêmio Jabuti, e do “Big Gatilho: um livro de poemas inspirado no BBB 21”. Pode ser encontrada nas redes sociais nos perfis @jaquefraga_ e @livronegrasou no Instagram. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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