Dos confins do não ser: eu, mulher negra, falo

Formulações de Sueli Carneiro têm potencial explosivo e apresentam táticas para resistir à manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais

Carneiro, Sueli
Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser

Zahar • 432 pp • R$ 69,90


O nome de Sueli Carneiro primeiro chegou a meus ouvidos em uma palestra sobre feminismo negro na universidade. Depois, em um curso para jovens feministas, no qual li seus artigos e foi indicada a leitura de sua tese. Fruto dessa produção, o recém-lançado Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser é uma das obras que demonstram, do início ao fim, o que é um intelectual à frente de seu tempo. Sueli Carneiro mira em pontos estratégicos, visando subverter lógicas e provocar pequenos mas incisivos tsunamis mentais. E também práticos.

Nesse livro, a filósofa parte dos conceitos “dispositivo” e “biopoder” de Michel Foucault — que viabilizam a criação do “outro” para a consolidação do “eu hegemônico” — para pensar o Brasil. Como está no livro: “O ser se constitui pelo não ser”. O dispositivo de racialidade opera uma divisão ontológica entre existências na qual os “outros” são assujeitados — por leque múltiplo de elementos ditos e não ditos —, permitindo a manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais. Assim, discursos, instituições, sistemas jurídicos e relações sociais cotidianas são sustentados por uma divisão social e política baseada em raça/cor/etnia.

A ontologia da diferença depositará pessoas negras, indígenas e de outras etnias como os que “não são”

Construídos como o oposto negativo para afirmação da superioridade branca, negros serão pobres porque são negros (e, aqui, a ordem dos fatores altera o produto); comporão a maioria da população prisional por serem negros e não por cometerem mais crimes do que brancos. Pela desumanização, negros serão mais assassinados e provocarão menor indignação social diante da violência. Serão tidos como potencialmente perigosos, que precisam ser controlados, moldados, civilizados. Nesse sentido, o dispositivo de racialidade manipula diferenças para a construção de padrões estéticos, políticos, econômicos, jurídicos e sociais.

Essa provocação filosófica e política do pensamento carneiriano, que figura como diagnóstico histórico do Brasil, dialoga com autores e experiências políticas, como Charles Mills e sua teoria do “contrato racial”. Sueli Carneiro aponta essa teoria como estruturadora do dispositivo da racialidade, uma vez que constitui um poder particular com regras formais e informais que determinam lugares em um sistema de privilégios social, econômico, jurídico e das possibilidades de vida e de morte. A diferença é que o contrato racial se estabelece entre os que ganham o status de pertencentes à humanidade ao marginalizar todos os “outros” à desumanidade.

A vida dos outros

Pela ontologia da diferença, pessoas negras, indígenas e de tantas outras etnias serão designadas ao campo do “não ser”: não são humanas; não são capazes de produção intelectual; não são produtoras de cultura (ou, se são, sua cultura é tida como folclórica, popular etc.).

Esse processo tem no “epistemicídio” um instrumento dos “mais eficazes e duradouros da dominação étnico-racial” pois deslegitima a senciência e a sapiência de grupos dominados. No epistemicídio se encontra a base para definir o que é racionalidade, universalidade e intelectualidade. No epistemicídio surge a surpresa com a capacidade intelectual de pessoas negras, mesmo que inconscientemente. A surpresa disfarçada de elogios a pessoas negras em espaços de formulação intelectual é uma marca do epistemicídio e de um sistema de hierarquização do mundo e dos lugares sociais.

Merece atenção o diálogo que Sueli Carneiro estabelece com a obra de outra gigante intelectual que foi bell hooks para se posicionar contra o anti-intelectualismo em nossas comunidades. Se por um lado esse é reflexo de um não lugar ou não representação em espaços tidos como intelectualizados, por outro é uma ação necessária da “luta pela libertação”. Carneiro defende que o intelectual negro tem como tarefa a “produção individual de conhecimento” como estratégia para fortalecer a si e as lutas políticas comunitárias, para construir e consolidar espaços institucionais nos quais pessoas negras possam se referenciar e apoiar trajetórias mutuamente.

Estar na universidade ou produzir intelectualmente fora dela é uma tarefa e uma ação política que precisa estar articulada ao fortalecimento da liberdade comunitária e do comum. Essas intelectuais estão apontando que todos os espaços precisam ser subvertidos e transformados, mas que há táticas fundamentais para essas mudanças serem realmente radicais e não caírem em armadilhas liberais e de sucesso individual.

Há muitos argumentos de porquê Dispositivo da racialidade é uma obra referencial para pensarmos o Brasil, mas finalizo com uma perspectiva sempre marcante nas formulações de Sueli Carneiro e de intelectuais negros: demonstrar que diante de um histórico e diagnóstico de opressões sempre haverá resistência. Não há passividade histórica diante de opressões. E três táticas são fundamentais para a resistência na perspectiva carneiriana: manter-se vivo, libertar a razão sequestrada e estabelecer rupturas.

Esses três pontos não são nada fáceis de alcançar, mas não devem jamais deixar de ser perseguidos. E é por isso que há tantos embates ainda presentes quando falamos de atividade e ação policial; sistema de justiça; acesso, permanência e produção de ciência na universidade — não à toa atacam a teoria crítica da raça e esvaziam formulações e conceitos da intelectualidade negra —; produção, taxação, distribuição e redistribuição de riquezas. De dimensão complexa, as formulações de Sueli Carneiro têm potencial explosivo porque nos apresentam instrumentais fundamentais e profundos sobre o que somos e o que queremos, ou deveríamos querer, perseguir e ser como país.

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