É hora de parar de julgar os julgadores

A primeira vez em que ouvi falar em autocobrança foi na sétima série. Eu havia mudado para uma escola que era muito mais difícil, e esta, por sua vez, a cada bimestre divulgava um ranking dos melhores alunos, respectivamente da turma, da série, do ciclo e, por fim, do colégio inteiro.

Por Emanuella Santos, do HuffPost Brasil

Assim que descobri o tal ranking, decidi que não sossegaria até conquistar o primeiro lugar em todas as categorias. Precisava provar, sabe-se lá o quê e para quem, mas precisava provar. Provar, assim como um verbo intransitivo mesmo.

Poucos meses depois, em um exame clínico qualquer, o médico falou que eu estava muito tensa, que precisava parar de me cobrar tanto. Foi tão simples, mas naquele momento percebi que a autocobrança estava tomando uma proporção muito grande na minha hardlife de adolescente de sétima série.

Era importante ter um bom desempenho na escola, mas eu não podia pirar. Chegar ao primeiro lugar poderia ser uma meta, mas não uma obsessão. Até porque chegar ao primeiro lugar não ia mudar nada mesmo: meus amigos continuariam sendo os mesmos amigos, os professores os mesmos professores e, depois do primeiro lugar, viriam outros bimestres, outras dificuldades e outras batalhas pelos próximos primeiros lugares.

Talvez o médico não soubesse, mas aquela consulta se tornou uma das metáforas mais simples e mais importantes para que eu pudesse lidar com o paradoxo que são esses dias caóticos em que vivemos atualmente.

Adentramos uma era maravilhosa de novos debates e de conscientização a respeito de temáticas até então jamais ou pouquíssimo discutidas; assuntos como machismo,  racismo, homofobia, aborto e outras pautas tão importantes vêm à tona, e eu particularmente me sinto muito feliz, muito privilegiada por poder repensar tantos paradigmas, por ter a oportunidade de ressignificar tantos comportamentos equivocados, por desconstruir tantos preconceitos meus.

Mas, dentro desse contexto, uma coisa que me deixa muito assustada é a forma como as pessoas são quase em sua maioria imbuídas de um sentimento de superioridade e de autossuficiência, como se todos esses conceitos já tivessem sido perfeitamente cristalizados e absorvidos, como se todas elas já tivessem alcançado o primeiro lugar no ranking da vida.

Sinto como se, todos os dias, elas estivessem lá de cima, no topo da sabedoria sobre-humana, apontando o dedo para nós, digitando a hashtag #estamosdeolho e fazendo acusações sobre nossos erros espúrios: você come carne, eu não; você fez cesárea, eu não; você trabalha em escritório, eu não; você teve filhos, eu não; você faz dieta, eu não; você anda de carro, eu não; você vê novela, eu não; você votou na Dilma, eu não; você votou no Aécio, eu não; você votou nulo; eu não; você votou, eu não; você sim, eu não; você.

Talvez uma das maiores loucuras, dentro desse conjunto de julgamentos, seja a expectativa de que você, além de ter a sabedoria necessária para conduzir a vida com a postura perfeita, precisa ter maturidade e amor-próprio para se aceitar e lidar consigo mesmo sem sucumbir às pressões sociais e aos padrões vigentes, o que acaba se tornando aquilo que Caetano já chamava de avesso do avesso do avesso do avesso.

Seria uma espécie de se autocobrar exageradamente para não se autocobrar exageradamente. Você tem que viver “de boas”.

São tantas pessoas tão certas de seus ideais em um país tão novo, em uma democracia ainda tão frágil, em uma educação tão iniciante, em debates tão recentes.

Dentro deste turbilhão da vida, hoje só consigo me ver humilde e orgulhosamente errando, tropeçando, acertando, fazendo perguntas bestas e outras nem tanto, sofrendo, aprendendo com esses sofrimentos e com os sofrimentos alheios.

Ao contrário do que possa parecer, não tenho sobre essas pessoas raivosas o olhar condescendente de quem já passou dessa fase. Não aceitei de boas meus erros, minhas incertezas e minhas imperfeições. Nem aceitei me amar a qualquer custo.Mas aprendi a aprender, sobretudo a desaprender.

Aliás, estou aprendendo. A aceitar que preciso lutar contra preconceitos, mas antes preciso lutar contra os meus próprios. Que, apesar de ser mulher, negra e nordestina, também me valho de muitos privilégios, pois sou hétero, sou cis e sou letrada; inconscientemente sou preconceituosa e luto contra isso todos os dias. Preciso ser complacente comigo, porque os dedos da autossuficiência estão lá, apontando e nunca perdoando os erros.

Percebi também que não integrar o status quo significa que posso, sim, sentir estranhamento ou desconforto, porque o status quo, em todos os âmbitos, como o próprio nome já diz, sempre foi inerente à nossa sociedade, e uma desconstrução não se dá de um dia para o outro.

É ok não ser ok.

E não posso sentir nem vergonha nem orgulho disso. Porque é justamente essa vontade de chegar pra somar, essa crença no valor e na dignidade da vida que me tornam demasiadamente humana – e é esse pensamento inexato que me faz juntar Nietzsche e Zeca Pagodinho em uma única frase também.

Fico cá pensando com os meus botões, como seria se eu tivesse meus doze anos hoje, dentro de toda essa conjuntura, recebendo a dose diária de apontamentos de erros, de patrulhamento virtual, de julgamentos, de cobranças pela autocobrança, de perseguição pelo primeiro lugar no ranking de todas as coisas do mundo.

O que compreendo é que, nessa efervescência por um mundo melhor, vamos de um extremo ao outro e, um dia, se George Harrison permitir, encontraremos o caminho do meio.

Por sorte, aquele médico me prescreveu pílulas eternas de tranquilidade itabirana, e junto aos meus amigos raivosos dou as mãos para que não nos afastemos muito.

Vamos de mãos dadas.

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