Walter Mesquita: Viva Favela os olhos do morro

Os olhos do morro

A trajetória do menino simples que se tornou uma das referências quando o assunto é fotografia de favelas

POR RONIEL FELIPE

Em uma sala de uma universidade carioca, precisamente em 2008, uma mesa composta por editores de fotografia de vários veículos de comunicação discutia a comunicação comunitária. Como na época as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ainda não eram uma realidade nas comunidades, a segurança de repórteres, cinegrafistas e fotógrafos estava em pauta e inflamava o debate. “Nossos repórteres foram fazer um curso em Gaza para poderem fazer matérias nos morros aqui do Rio”, apontou um editor, como medida de salvaguarda de seus subordinados. Outra chefia, ainda mais cautelosa com a situação, afirmou que seus repórteres estavam expressamente proibidos de trabalhar em favelas. Foi o estopim para que um negro de fala mansa e jeitão tipicamente carioca, sem pestanejar, interviesse no debate. “As estatísticas comprovam que apenas 1% dos moradores de favelas estão envolvidos com tráfico de drogas. O restante são trabalhadores que sofrem, lutam e usam a criatividade para viver em paz”, disparou.

Walter Carlos Mesquita, editor de fotografia do Viva Favela – um projeto de jornalismo comunitário com mais de uma década de atividades – era a figura representante da mídia alternativa, cujo discurso destoava do apontado pelos profissionais de grandes veículos de comunicação. Como alicerce para a assertiva que causou constrangimento àqueles que pareciam enxergar as favelas apenas como áreas de conflito armado, estão mais de 15 anos fotografando o cotidiano das comunidades cariocas, sem nenhum tipo de treinamento de guerra e equipamentos de segurança, mas esbaldando simpatia e respeito às pessoas.

Capixaba de nascimento, mas carioca de coração e alma, Walter Mesquista, como é mais conhecido, chegou ao Rio de Janeiro quando ainda era bebê. “Minha mãe tinha 14 anos quando fugiu com meu pai. Viemos de Vila Velha”, recorda o fotógrafo, hoje com 44 anos de idade. Após morar por um curto período próximo ao Jóquei Clube, no bairro da Gávea, mãe e filho firmaram residência no município de Queimados, na Baixada Fluminense. Lá, Walter viveu sua infância. “Soltar pipas era minha paixão. Eu ficava me imaginando voando. Gostava de ver quando a linha arrebentava e a pipa saía pelo céu, livre, leve e solta. Sem rumo certo e sem destino”, conta o vila-velhense que passou a frequentar a escola tardiamente, somente aos 10 anos de idade.

Sem saber das surpresas que o destino lhe reservaria como fotógrafo, Walter foi vendedor de picolés, mas esbarrou na própria timidez. Para conseguir o dinheiro do material para fazer as pipas de que tanto gostava, o menino ganhava trocados ajudando senhoras a carregar compras. A adolescência chegou e, com ela, a responsabilidade de tomar um rumo na vida. Assim, ao concluir o ensino médio, preparou-se arduamente para o vestibular de Direito, já que sua avó sonhava ter um neto advogado. Seu destino parecia traçado. No entanto, durante um acampamento realizado com amigos na Ilha Grande, em Angra dos Reis, a história do então jovem de 17 anos, que nutria paixão pela liberdade do céu, mas se preparava para viver sob os tetos burocráticos de tribunais e cartórios, passou por uma grande reviravolta. “Cada integrante do grupo foi incumbido de uma função. Eu recebi do líder do acampamento uma câmera fotográfica compacta.

Ele me perguntou se eu sabia fotografar e eu respondi que era moleza”, brinca Walter, relembrando. “É só olhar no buraquinho e apertar o botãozinho.” Sem nenhum conhecimento técnico e desprovido da sorte de principiante, como constataria mais tarde, ele se pôs a clicar tudo o que estava ao seu redor. Após uma semana fazendo fotos em um cenário paradisíaco, era chegada a hora de ver os resultados da função que resultou bastante prazerosa. “Levei os filmes pra revelar, todo bobo, mas foi um desastre total. Não deu para aproveitar quase nada. Fiquei tão triste que nunca entreguei as fotos e jurei que um dia ainda iria voltar para Ilha Grande e fazer as melhores fotos da minha vida.”
UMA CÂMERA NA MÃO E UMA PROMESSA A SER CUMPRIDA

estudos, e a decisão de tomar um novo rumo na vida foi questão de (pouco) tempo. “Meu professor de fotografia também era diretor do SENAC, uma das melhores escolas de fotografia do Rio na época. A gente conversava muito e a empolgação dele me encorajou a fotografar cada vez mais. Eu estudei durante um ano inteiro, seis dias por semana, e a fotografia acabou me fazendo abandonar o vestibular para Direito.” Talentoso com a máquina e com um olhar cada vez mais refinado, o vila-velhense venceu seu primeiro concurso de fotografia ainda em 1989. Um ano depois, obteve êxito em outro concurso, o que lhe valeu uma bolsa de estudos no SENAC e acabou determinando a sua entrada para o mundo do fotojornalismo. Apesar da afinidade com as lentes, ele se manteve como fotógrafo “hobbista”, emprestando seu olhar a pequenas publicações comunitárias.

Após uma década de muitos cliques, Walter aliou sua experiência fotográfica a sua verve de comunicação comunitária. “Ao lado de amigos, fiz parte de um núcleo de comunicação. Queríamos juntar as diferentes classes culturais de Queimados e dos municípios vizinhos. Também éramos ligados à rádio comunitária que havia no nosso bairro.” Ainda pensando em jornalismo comunitário e buscando oferecer uma alternativa de vida para adolescentes e jovens, Walter Mesquita criou um grupo de estudos de fotografia que passou por diversos bairros periféricos da cidade maravilhosa. No início dos anos 2000, uma nova e adorável peça do destino lhe foi pregada. Sem almejar o profissionalismo, ele soube que o Viva Favela, um portal de jornalismo comunitário recém-criado pela Viva Rio, estava em busca de colaboradores para contratação. Receoso e sem empolgação, Walter só deixou alguns de seus trabalhos fotográficos com os editores após muita insistência de uma amiga, que pleiteava uma vaga de repórter no Viva Favela. “Depois de alguns meses, me chamaram, apresentaram a proposta de trabalho e me selecionaram para trabalhar como fotógrafo. Éramos um grupo de 14 moradores de favelas, e, portanto, acostumados a ser enganados e discriminados”, revela.

Depois de um ano de atividades, toda a desconfiança foi findada. Não demorou para que a proposta pioneira do Viva Favela desse certo, crescesse e alcançasse novos patamares. Em pouco tempo, os veículos da grande mídia passaram a buscar pautas a partir de matérias produzidas pelos correspondentes comunitários. O portal ganhava status de referência internacional em jornalismo comunitário. Walter foi criando um portfolio notável e disseminando cada vez mais seu conhecimento, ao colaborar com o surgimento de uma talentosa geração de fotógrafos periféricos. Hoje, o Viva Favela (www.vivafavela.com.br) fala da realidade das periferias e favelas de todo o Brasil. “No começo, as pessoas nos chamavam de fotógrafos populares, mas depois de um tempo me senti incomodado, assim como meus colegas fotógrafos de outros projetos que também registram o dia a dia das favelas e periferias cariocas. Somos fotógrafos tão capacitados quanto os profissionais da grande mídia, mas temos um campo de atuação diferente. Fotografamos as coisas boas e ruins de uma favela sob a ótica de quem vive lá”, explica Walter, que já morou em comunidades como Rocinha, Nova Holanda, Maré e, há um ano, vive na Tavares Bastos, no Catete.

” FOTOGRAFAMOS AS COISAS BOAS E RUINS DE UMA FAVELA SOB A ÓTICA DE QUEM VIVE LÁ ”

waltermesquita

Vista do alto do Morro Tavares Bastos, no Catete. A janela da casa de Walter Mesquita

 

 

DE QUEIMADOS PARA O MUNDO

O trabalho como editor do portal Viva Favela rendeu destaque internacional a Walter. Em 2009, ele trabalhou como assistente e tornou-se amigo de Robert Polidori (fotógrafo mundialmente reconhecido que esteve na capital carioca para fotografar a arquitetura dos morros a convite do Instituto Moreira Salles). Por se tratar de uma situação delicada, já que não havia UPPs e tampouco a possibilidade do trabalho passar despercebido, pois Polidori utiliza equipamentos profissionais e de grande porte, Walter foi responsável pela condução da situação e, após conversar com algumas lideranças comunitárias, garantiu a segurança do fotógrafo e a realização do trabalho. “No fim, tudo ocorreu tranquilamente e fotografamos na Rocinha, no Complexo do Alemão, no Morro da Mineira, no Pavão e no Cantagalo”, comemora, lembrando que dificilmente um fotógrafo da chamada grande mídia teria essa possibilidade, na época.

A experiência internacional do fotógrafo não terminou com o trabalho de auxiliar do canadense Robert Polidori. Em 2011, Walter esteve na cidade de Dayton, no estado de Ohio, Estados Unidos, para representar o Brasil em um congresso composto de lideranças comunitárias de diversas partes do planeta. No mesmo ano, o editor de fotografia do Viva Favela esteve em Nova Iorque, onde trabalhou com o pessoal da escola de cinema Ghetto Films School, que funciona no bairro do Bronx.

De viagem marcada para um novo congresso de lideranças comunitárias e com um convite do governo americano para participar de um projeto de intercâmbio entre representantes de várias nações, o menino tímido de infância pobre que se apaixonou pela fotografia escreve seu nome como um dos principais fotógrafos ativistas do Brasil. Enquanto esse dia não chega, ele segue registrando a singela beleza dos morros e rostos de brasileiros que, muitas vezes confundidos com vilões, são verdadeiros heróis. E o melhor de tudo: Walter continua fazendo o seu trabalho com os mesmos olhos de menino sonhador e humilde.

 

 

Fonte: Revista Raça

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