As últimas depois de ninguém: meninas em privação de liberdade

Início este texto agradecendo todas as mulheres, especialmente às mulheres negras, que vieram antes de mim, e também aquelas com as quais andamos juntas e às que estão por vir. Para além de março e da luta, desejo que tenhamos ar para que, depois desta longa ausência de motivos, possamos sorrir juntas e com tantas outras. Junto às mulheres “livres” que me inspiram quero referenciar as mais de 200 meninas e mulheres em privação de liberdade que, por meio do Sarau Asas Abertas, desde 2012 me ensinam sobre o que significa na prática ser um ser humano cada dia melhor, sem vocês minha prática feminista seria ainda mais falha e incompleta, pois enquanto vocês não forem “livres” não será completa.

Mundialmente março é um mês marcado por muitas comemorações e celebrações às mulheres, mesmo com altos números de violência doméstica, feminicídio, desigualdade de salários e de direitos, muitas flores e chocolates ainda não distribuídos e pouca mudança prática é percebida. A cada ano conhecemos mais histórias protagonizadas por mulheres que lutaram e lutam pela defesa da liberdade e direitos, e somando a este cenário onde luto necessita ser lido como verbo para seguirmos, desde de 14 de março de 2017 perguntamos diariamente: Quem mandou e por que mataram Marielle Franco?

Em 2021 o mês de março ganhará mais um triste e lamentável significado, pois será lembrado, tentando ser esquecido, como o pior mês da pandemia do novo coronavírus no Brasil, atingindo a triste e inaceitável marca de mais de 270.000 mil pessoas oficialmente mortas e tantas outras que sabemos que não entram nas estatísticas.

O cenário brasileiro nos coloca em uma situação urgente de honrar os que morreram, cuidar pelos que ainda pulsam e ficar em casa o máximo possível. Mais do que nunca é preciso dosar nossas emoções para continuarmos seguindo, lutando e resistindo, mas também sonhando e acreditando que apesar de todo o cenário desesperador que vivemos, amanhã será outro dia.

Refletir sobre isso me faz questionar o quanto temos que aprender com as meninas em privação de liberdade no Brasil. No Brasil falsas ideias e conceitos são facilmente incorporados nas nossas práticas, ações e imaginário, exemplos não nos faltam, mas ressalto o mito da Democracia Racial e o atual negacionismo em relação aos efeitos do coronavírus por grande parte da sociedade brasileira, agravada por políticos especialistas em políticas de morte. Neste mesmo sentido, a ideia de um sistema especial de atendimento para adolescentes a quem são atribuídas práticas infracionais está posta apenas em teoria e legislações, mas ainda muito distante da realidade e o que era para ser uma política pública, se tornou uma extensão das unidades prisionais para adolescentes.

Mas não para qualquer adolescente, é visível que a população em atendimento socioeducativo tem cor e CEP bem demarcados, e mesmo a maioria sendo meninos, quero chamar atenção para as meninas, muitas já mulheres pela vida, também são conhecidas como as “últimas da fila depois de ninguém”. Uso emprestada esta frase da pesquisadora e admiradora pessoal Dina Alves que a usou para retratar a situação das mulheres negras em privação de liberdade.

A luta pelos direitos, respeito a individualidade e peculiar período de desenvolvimento das meninas em privação de liberdade não podem mais esperar e devem estar na pauta central dos movimentos da infância, adolescência, juventude, feministas, humanistas e negros. Nesta semana em que lembramos muitas histórias de lutas, perdas e vitórias femininas são as meninas que me inspiram a querer ser melhor e desejar saber sobre seus sonhos, ainda que distantes pela ausência de direitos e oportunidades, mas todos possíveis se voltarmos nossas atenções a elas.

Logo, é urgente que haja uma busca coletiva pela aplicação de um atendimento especializado, humanizado e atendo às necessidades das adolescentes responsabilizadas pela prática infracional em privação de liberdade, exatamente como previsto nas normas nacionais e internacionais, por meio de políticas públicas pensadas, executadas, monitoradas e revisadas quando necessário, para garantir que o SINASE seja de fato um atendimento especializado e comprometido com a proteção integral de todas e todos adolescentes em atendimento socioeducativo. Por fim, para que não dizer que não falei das flores, queremos sim flores e chocolates, mas antes ou junto, queremos liberdade, equidade, direitos e protagonizar as nossas próprias histórias.

¹Advogada, especialista em Gestão Pública pelo Insper e Líder do Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras apoiada pelo Fundo Baobá.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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