Desde que o filho nasceu, Eloana de Cássia da Costa, 37 anos, não faz outra coisa a não se dedicar aos cuidados dele. Claudiano, hoje com 17 anos, tem epilepsia e escoliose grave. Por conta da escoliose, ele realizou uma cirurgia para a correção da coluna em janeiro de 2020.
Com o início da pandemia, a família passou a viver confinada para que ele não se infectasse com a covid-19. Parte de seus familiares não acredita na gravidade do vírus e, por conta disso, muitos laços afetivos se romperam.
“Eles são uns negacionistas. Eu ouvi meu sobrinho zombar e dizer ‘vocês estão com medo’, mas eu realmente estou. Há cinco anos, o meu filho teve uma apendicite e entrou em coma por causa da dor. Por ser autista, o cérebro dele codifica as coisas de maneira diferente. Eu não iria arriscar e sair nesta pandemia”, afirma.
O descuido e indiferença em relação a seu filho não são de hoje. Segundo ela, Claudiano sempre foi deixado de lado pela família do marido, que atualmente vive em São José dos Campos, interior de São Paulo. Nas redes sociais, ela acompanhava todos reunidos no shopping ou em festas, enquanto seu filho não era nem convidado.
“Aquilo foi me machucando e me fazendo muito mal. Por conta disso, passei a fazer terapia. Eu estava com inveja. Não que eu queria os filhos deles, mas queria que meu filho estivesse junto deles. Eu aprendi da maneira mais difícil que ninguém tem obrigação de gostar da gente”, diz.
Eloana engravidou aos 20 anos e desde então se centrou exclusivamente nos cuidados do filho, sem trabalhar fora ou dar continuidade aos estudos. Em 2019, um fato veio para mudar completamente sua vida: uma propaganda na televisão só com estudantes negros.
A propaganda era sobre um curso na Uneafro, dedicado a alunos que têm interesse em prestar vestibular ou passar em concurso público. Ela, com Ensino Médio completo há cerca de 18 anos, topou o desafio de voltar a estudar e procurou a organização.
Logo no primeiro dia de aula, Eloana ficou emocionada ao ver que os professores e estudantes, negros e negras, eram semelhantes a ela. Ela também saiu da função de ser apenas mãe para começar a se reconhecer como pessoa. “Por muito tempo, eu só falava que era a mãe do Claudiano. Eu nem falava o meu nome. É uma sensação tão gostosa poder falar sobre você, dar sua opinião sobre determinado assunto, falar sobre o que eu penso em fazer da vida. Aquilo era algo só meu”, relata emocionada.
As classes abriram janelas para enxergar o mundo ao seu redor e até a si mesma com outros olhos. Uma professora de literatura foi inspiradora ao incentivá-la a se dedicar aos estudos e se engajar na causa do movimento negro.
A reivindicação de sua identidade como mulher negra
Através da Uneafro, Eloana descobriu mais sobre sua ancestralidade e vários momentos especiais marcaram esse processo. Em novembro de 2019, ela participou dos bastidores da 15ª Edição do Miss Dandara, evento que promove o debate sobre racismo e a identidade negra.
“Nos concursos de beleza, eu nunca havia visto nenhum negro. As meninas lá aprendem a fazer maquiagem, modelagem e montar desfile. Ver aquelas meninas assim, felizes, me encantou de um jeito”, conta.
Em outra situação, durante uma palestra na Uneafro, ela aprendeu sobre anemia falciforme, doença hereditária (transmitida de pai para o filho) e caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue.
Todos em sua família possuem essa doença. “Eu descobri que, na tentativa de fazer um escravizado mais forte, os senhores da Casa Grande faziam o cruzamento sanguíneo. Ninguém sabia quem era a família de quem. Todo mundo do sul de Minas Gerais (Estado onde que nasceu) tem a doença, que é predominante em pessoas pretas”, observa.
Nos cursos educacionais da organização, ela também descobriu que a preposição “de” em um sobrenome de afrodescendente no Brasil se refere a um escravizado de uma determinada fazenda. “Eu sou ‘da Costa’ e havia uma fazenda com esse nome em Minas Gerais. Ou seja, meus ancestrais provavelmente foram escravizados naquele local”.
Nascida e criada em Consolação, Eloana só teve consciência sobre sua cor aos 12 anos, quando sofreu racismo ao ser chamada de ‘macaca’ por um colega de classe. Antes disso, ela não percebia a diferença entre as cores de pele. O choque foi tamanho que ela não soube reagir ao comentário na época.
Depois sua família se mudou para Paraisópolis, em Minas Gerais. Neste local, a maioria da população era negra, mas não era maioria nos espaços de poder. Na adolescência, Eloana trabalhava em um supermercado como caixa e outra menina negra trabalhava como caixa em uma padaria próxima. As pessoas confundiam as duas.
“As pessoas me falavam ‘mas você não estava agora pouco na padaria?’ e eu ficava ‘como assim?’. Depois eu fui perceber que a confusão era porque eu e a moça éramos negras. Não tínhamos nada a ver uma com a outra”, afirma.
Com seu ingresso na Uneafro, Eloana aprendeu que todas essas situações não são casos isolados, mas sim resultado de um mecanismo enraizado na sociedade brasileira: o racismo estrutural. “Isso dói. A forma que elas cresceram e viram o mundo fizeram delas o que são hoje, então não tem como eu criticar isso. Só posso lamentar”.
Com o curso, ela também tomou a iniciativa de fazer a transição capilar. Até aquele momento, ela não conhecia o próprio cabelo. “Antigamente, eu tinha vergonha até de fazer exercícios físicos por ser gorda. Hoje me exercito não porque quero emagrecer, mas pela minha saúde. Eu me aceitei como mulher gorda e sou linda”, declara.
Planos para o futuro
Atualmente, Eloana atua como coordenadora do curso pré-vestibular da Uneafro. No entanto, por conta da pandemia, muitos estudantes pararam ou se afastaram das aulas do cursinho. A instituição, então, criou um projeto para levar internet 3G para os estudantes e também providenciou a ajuda em cestas básicas para os que são de baixa renda.
São cinco alunos fixos e agora eles estão em busca de mais interessados. Existem núcleos em Taubaté, Ubatuba e Aparecida do Norte. Eloana é a responsável pelo núcleo em São José dos Campos, no interior do Estado de São Paulo.
Através do vestibular, ela recebeu uma bolsa integral para cursar Contabilidade em 2020, mas teve que desistir dos estudos, pois não estava conseguindo equilibrar as atividades com os cuidados do filho. Seu maior sonho no momento é retomar os estudos para se formar.
A Uneafro vem ajudando Eloana também em outras frentes, como por exemplo, com a medicação para o filho quando está em falta no Sistema Único de Saúde (SUS). O remédio mais caro custa R$250,00 a caixa e seu filho não pode viver sem o anticonvulsivante. A iniciativa também já a ajudou em questões jurídicas e na Defensoria Pública.
“As conquistas que eu tive foram incríveis. Se um aluno tiver o estalo que eu tive, vou ficar tão feliz. Me sinto tão bem como estou hoje e também quero que outras pessoas se sintam assim”, conclui.