Discussão parada no STF sobre sacrifícios de animais em rituais de religião de matriz africana reflete série de ações nos tribunais do país tentando proibir a prática. A Sputnik Brasil conversou com Roger Cipó, ativista negro, fotógrafo e religioso, que explicou como funcionam os rituais e quais razões levam a Justiça sobre essas religiões.
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No dia 9 de agosto deste ano, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal discutiu um recurso extraordinário do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPF-RS) a respeito da Lei Estadual 12.131/04-RS. A legislação de 2004 altera a Lei 11.915/03, o Código Estadual de Proteção aos Animais, adicionando um parágrafo que permite o sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana.
Segundo o MPF gaúcho, a lei invade a competência da União no que tange à legislação penal e também aponta privilégios para as religiões de matriz africana por garantir-lhes o direito ao sacrifício de animais em rituais religiosos. Este último ponto, para o MPF, fere o caráter laico brasileiro, protegido pela Constituição Federal.
Já a Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul discorda, apontando que o texto não invade a legislação penal, pois aponta termos ao direito ambiental e à proteção da fauna, o que segundo a Constituição é permitido à aos estados e municípios.
No STF, órgão de competência do Judiciário em temas constitucionais, a discussão parou devido ao pedido de vistas do processo por parte do ministro Alexandre de Moraes. Já haviam votado o relator, Marco Aurélio Mello, parcialmente a favor, e também o ministro Luiz Edson Fachin, que se colocou contra o recurso.
O movimento do MPF do Rio Grande do Sul desencadeou medidas semelhantes em outros locais, como em Cotia, no estado de São Paulo. Lá, a lei 1.960/0216, chegou a proibir a prática de sacrifício ritual, mas foi julgada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
O que dizem os religiosos?
A Sputnik Brasil ouviu Roger Cipó, membro da Comissão afro-religiosa Òkàn Dimó, que organizou uma marcha contra a intolerância e o racismo no dia 8 de julho, em São Paulo.
Ele explica que nas religiões de matriz africana que praticam rituais com sacrifício de animais, a carne é dividida entre os praticantes como um alimento. O ritual seria uma forma de tornar a comida sagrada e dividir entre os religiosos.
Outras religiões também fazem rituais parecidos para o consumo de animais. É o caso do judaísmo e também dos muçulmanos. O Brasil, inclusive, tem uma indústria de carnes com alta especialização no abate religioso de animais de acordo com ritos religiosos, e domina parte do mercado internacional neste âmbito.
“O ritual em si é um ritual que parte entendendo o animal como sagrado. Quando a gente entende o animal como sagrado é sagrado porque é um ser vivo que é um ser que nos alimenta, que troca essa energia com o povo de terreiro”, ressalta Roger, que continua, afirmando que os animais, no ritual, por serem considerados sagrados não podem ser submetidos a nenhum sofrimento.
“Desde o armazenamento, ao transporte, ao trato. Esses animais são recebidos no ritual com cânticos, eles são limpos, eles são acariciados, inclusive. E o próprio rito do abate é feito de uma forma para que haja morte instantânea, como prevê, inclusive, a legislação que autoriza o abate doméstico”, explica Roger Cipó, ressaltando que o abate religioso é considerado abate doméstico.
Ele também lembra que caso o animal demonstre sofrimento, ele não é abatido, pois os maus tratos não são permitidos pela religião.
“A maioria das vertentes afro-brasileiras tem como premissa que se entenderem que o animal está com uma expressão de dor, de sofrimento, esse animal não é abatido […]. É quase como se a gente estivesse recebendo uma mensagem da divindade, uma mensagem do sagrado desautorizando esse abate. Então se há o sofrimento há a desautorização do sagrado para que esse abate aconteça”, enfatiza Roger. A alimentação neste caso, estaria sob um contexto sagrado e de uma cosmovisão específica, voltado para o espírito, por isso o processo ritualístico.
Intolerância religiosa?
No entanto, por que o ritual de matriz africana incomoda a ponto da criação de leis que o proíbam? Boa parte dessa legislação aponta que os animais nesses rituais passam por maus tratos, o que caracteriza crime segundo a legislação brasileira.
A discussão é ampla e envolve a delicada questão racial brasileira. Sabe-se que no Brasil, as religiões de matriz africana tem sido alvo preferencial de ataques. Em julho, o país foi denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU) por abusos contra os cultos religiosos afro-brasileiros. Um relatório divulgado pela organização em 2017 aponta que entre 2011 e 2015 o Brasil teve 697 denúncias de intolerância religiosa no país, com maior incidência de denúncias em relação às religiões de matriz africana.
No Rio de Janeiro, o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (CEPLIR) apresentou números ainda maiores, com 1.014 denúncias do tipo, com 71,15% dessas denúncias contra religiões de matriz africana.
Para Roger Cipó, a desumanização ainda presente na forma como se concebe no senso comum as religiões de matriz africana está diretamente ligada ao racismo no Brasil. Para ele, a história do país imprimiu sobre o negro e sua religiosidade uma mistificação.
“Há um processo de demonização que precede as manifestações de intolerância religiosa, de ataque a religiosidades. É sobretudo um ataque às práticas de humanização dos povos negros no Brasil que de alguma forma resistem aqui desde o período de escravização”, afirma.
Se o racismo, por definição, desumaniza, ele aponta, é impossível enxergar no negro a sua religiosidade. Para Roger, esses traços estão presentes na judicialização dos rituais de religiões de matriz africana.
“A grande questão aqui não é o abate em si, a grande questão aqui são os protagonistas, quem está promovendo esses abates. E nesse sentido são as religiões de matriz africana”, ressalta Roger, dando a entender que o problema não seriam os animais, mas sim os praticantes das religiões os verdadeiros alvos das ações judiciais.
“A violência contra as religiões de matriz africana traz muito mais características de um racismo religioso do que relação com as intolerâncias que existem contra outras denominações religiosas”, conclui Roger.