A emoção na escrita das mulheres negras

Enviado por / FonteHoje em Dia, por Tio Flávio

Conceição é mulher, negra, nascida em uma extinta favela de Belo Horizonte. Fazer a descrição desta forma é necessário, uma vez que o curso de vida da Conceição Evaristo difere do de tantas outras mulheres, negras e faveladas.

Filha de uma doméstica, ela foi culturalmente preparada para assumir o papel da mãe, numa sociedade que não imagina que “pessoas como ela” podem chegar à universidade ou até decidirem se querem fazer faxina, dar aula, advogar, ser do lar ou ser atriz.

Ela ia com frequência, ainda adolescente, à biblioteca Luiz de Bessa, na região centro-sul de Belo horizonte. Logo pela manhã, pegava alguns livros e ficava lendo na Praça da Liberdade. Disse que nem se lembra se tinha fome, pois devorava as histórias que lia e, depois, atravessava a rua para devolver os livros.

Foi de mudança para o Rio de Janeiro, onde fez a graduação, cursou um mestrado, deu aulas e fez o doutorado. Hoje é uma das mais referendadas e reverenciadas autoras que temos, inclusive com livros publicados em outras línguas. Conceição Evaristo tem falas bem fortes e reais, que em seus livros nos permite fazer uma viagem a mundos que muita gente nem imagina que existam.

Em uma entrevista ela explica que faz parte de muitos grupos de mulheres negras. Então, afirma o seguinte: “quando minha escrita passa, está passando também a voz de outras mulheres. Receber o prêmio Jabuti para o coletivo também foi muito significativo”. Sim, de certa forma são várias mulheres negras tomando o palco quando algumas delas se tornam protagonistas. Na verdade, um protagonismo a partir daí visível, porém daquilo que elas já são e representam na vida quotidiana.

O acesso às obras de autoras negras ainda é bem restrito. Não faz muito tempo que conheci as falas da professora Sobonfu Somé. O mercado editorial está se abrindo, mas ainda há muita riqueza a ser descoberta. Ler Angela Davis, Maya Angelou, Bell Hooks, Chimananda Ngozi Adichie nos mostra quanto tempo perdemos de acesso a tanta vivência, assim como, por aqui, temos Djamila Ribeiro, Eliana Alves Cruz, Sueli Carneiro, a mineira Lélia Gonzales e tantas outras. E mais pertinho ainda, temos acesso aos escritos da Cris Souza Fontês, Pretinha, Wilma Tinoco e outras também tão valiosas.

E o tanto de histórias ainda há em outras mulheres negras, como Carolina Maria de Jesus, Audre Lorde, Alice Walker, Taiye Selasi, Toni Morrison, Gwendolyn Brooks, Zora Neale Hurston, Harriet E. Wilson, Paulina Chiziane, Buchi Emecheta, Tayari Jones, Octavia E. Butler e Amanda Gorman.

Quantas outras ainda não li nada a respeito. Há as que ainda nem descobri. E aquelas que escrevem escondido, que guardam seus rascunhos, que nem sequer sabem que são riquezas literárias e acreditam que são só suas dores e amores colocados num pedaço de papel para fugir da solidão. Ou são manifestos de luta, seja luta de uma ou de uma coletividade.

Numa pesquisa que fiz sobre a professora brasileira Antonieta de Barros, cheguei até o livro “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”, da jovem e talentosa escritora e cordelista cearense Jarid Arraes. Que delícia ter conhecimento da vida dessas mulheres de uma forma inusitada para mim, que é através da literatura de cordel.

Jarid começa contando justamente a história da catarinense Antonieta de Barros, jornalista, professora e política nascida em 1901. E aí vêm Aqualtune, princesa africana vendida como escrava reprodutora no Brasil; Carolina Maria de Jesus, mineira de Sacramento, que foi catadora de recicláveis e escritora de obras marcantes; Dandara dos Palmares, guerreira que morreu em liberdade, negando-se ser escravizada.

O livro fala também de Esperança Garcia, mulher que escreveu uma carta a um presidente de província, denunciando maus-tratos do seu povo escravizado; Eva Maria do Bonsucesso, que esbofeteada por um senhor branco e rico, conseguiu que ele fosse preso, com a ajuda de quem viu a cena; Laudelina de Campos Melo, defensora das trabalhadoras domésticas; Luísa Mahin, uma africana que em Salvador ajudou muitas mulheres com mensagens escondidas nos quitutes que vendia; Maria Felipa, pescadora e marisqueira, que lutou contra embarcações portuguesas que ameaçavam a Ilha de Itaparica;

Maria Firmina dos Reis, escritora de Úrsula, primeiro romance feminino e, também, o primeiro no Brasil escrito por uma mulher negra.

Mariana Crioula, costureira e mucama no Rio de Janeiro, tornou-se rainha de um quilombo e mulher de muita luta; Na Agontimé, vendida como escrava por seu próprio filho. Vindo morar em São Luís do Maranhão, teve até o nome apagado para jamais ser encontrada; Tereza de Benguela, também rainha quilombola, que em sua homenagem teve o dia 25 de julho instituído como o Dia da Mulher Negra; Tia Ciata, referência do samba e candomblé do Rio e Zacimba Gaba, princesa na região de Angola, mulher guerreira que comandou a fuga dos escravos.

Só de pensar que tantas mulheres foram aqui citadas, mas há outras mais que a história negligenciou! A todas elas, inclusive as não mencionadas diretamente, fica rendida a nossa homenagem.

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