Lula deveria nomear uma mulher negra para o STF, diz Angela Davis

Filósofa e ativista negra feminista lança livro que entrelaça a luta de mulheres com abolição do sistema de justiça criminal

Lula deveria ter nomeado uma mulher negra para a suprema corte brasileira, mas não qualquer mulher negra”, diz a filósofa e ativista negra feminista Angela Davis à Folha.

“Representação é importante, especialmente em um país como o Brasil, que finge publicamente ser uma democracia racial desde sempre, um lugar onde não há racismo”, diz a escritora, sobre a escolha do presidente brasileiro por seu advogado, Cristiano Zanin, para ser o nono ministro homem e branco da atual composição da corte.

“Ao mesmo tempo, temos de deixar bem claro que, quando enfatizamos a importância de nomear pessoas negras e outras pessoas de cor, não estamos nos concentrando apenas na raça, mas também na política”, afirma ela, que lança agora no Brasil o livro “Abolicionismo. Feminismo. Já”, editado pela Companhia das Letras, em co-autoria com as intelectuais e ativistas norte-americanas Gina Dent, Beth Richie e Erica Meiners.

Davis, que vem ao Brasil com Dent em julho para um congresso em Salvador, ilustra sua afirmação com o contra-exemplo norte-americano. “[O juiz] Clarence Thomas foi nomeado para a suprema corte dos Estados Unidos por ser negro, mas ele é o membro mais reacionário e conservador da corte.”

Para a intelectual, que é professora emérita da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, um dos vetores da frustração de ativistas brasileiros com o desfecho da indicação presidencial ao STF é o fato de “ainda não sabermos como criticar lideranças políticas que adotamos como progressistas”.

“A crítica pode ser feita de forma que não seja negativa, mas é com ela que você garante que os líderes políticos permaneçam fiéis àqueles que os elegeram”, afirma. “Um dos nossos maiores problemas nos EUA foi que não criticamos [o ex-presidente dos EUA Barack] Obama como deveríamos”, diz.

“As pessoas estavam muito relutantes em fazer críticas e manifestações porque tinham medo de serem associadas a outros críticos da direita. Essa é uma síndrome que precisa ser superada se quisermos seguir em uma direção realmente progressista”, acrescenta.

Davis é uma das maiores intelectuais negras norte-americanas e fez parte do partido Panteras Negras. Perseguida, ela entrou na lista do FBI dos dez mais procurados do país e foi presa em 1970, acusada de sequestro, assassinato e conspiração. Depois, foi absolvida das acusações.

Mas a campanha por sua liberdade eternizou a imagem da jovem de cabelo black power e punho cerrado que se tornaria ícone do feminismo negro e do abolicionismo penal, uma teoria que denuncia o caráter racista e classista da justiça criminal e a falência do sistema carcerário para se lançar na busca outras formas de resolução de conflitos, de garantia da segurança e de liberdade que desafiem esses sistemas.

São essas duas bandeiras tão presentes na biografia de Davis que “Abolicionismo. Feminismo. Já” entrelaçam de maneira definitiva ao evocar um feminismo abolicionista como a versão mais inclusiva do movimento, que engloba também as lutas antirracista, anticolonialista e anticapitalista.

“Historicamente, a abolição penal está ligada à abolição da escravidão. Nos EUA, as mulheres tiveram um papel extremamente importante no movimento abolicionista, mas pouca gente pensa em feminismo quando fala em abolição penal e abolição policial”, afirma Davis. “Um dos motivos pelos quais escrevemos o livro foi tentar ajudar as pessoas a reconhecer as raízes profundas do feminismo nos movimentos abolicionistas.”

A partir de diferentes pontos de vista –Davis vem da filosofia, Dent, da literatura, Richie, da sociologia e Meiers, da educação–, as coautoras do livro fazem uma genealogia do que chamam de feminismo abolicionista que tem início nos esforços pela libertação de mulheres presas nos EUA, como o movimento pela liberdade da própria Angela Davis.

Neste percurso, elas apontam que, paradoxalmente, foram algumas vertentes do feminismo, que elas chamam de carcerário, os motores do fenômeno do encarceramento em massa.

“Feminismos carcerários são aqueles que acreditam que a única maneira de vermos igualdade na sociedade é por meio da punição de violências de gênero com a mesma severidade de sentença que têm outros crimes”, diz Gina Dent, que é professora da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, e atual companheira de Davis. “Essa forma de pensar, excessivamente dependente do encarceramento, fez desse feminismo um dos maiores impulsionadores do encarceramento em massa.”

Entre a teoria e a utopia, o abolicionismo penal em geral é visto como algo utópico e revolucionário, mas ganhou terreno em plena pandemia, quando o assassinato de George Floyd, em 2020, gerou uma onda de manifestações antirracistas em várias partes do mundo e levou a discussão sobre racismo policial e judiciário para o centro de um debate público.

“Ninguém poderia prever uma resposta tão ampla no contexto de uma pandemia, o que talvez tenha dado às pessoas o tempo necessário para refletirem mais profundamente sobre questões de que elas tinham ouvido falar casualmente no passado”, diz Davis. “Hoje, muito mais pessoas levam a sério a relação entre racismo e encarceramento do que antes.”

Na prática, diz Davis, essa é uma janela de oportunidade para o feminismo abolicionista. “Um dos exemplos mais convincentes de que é preciso mudar o sistema atual é a maneira como a polícia é chamada para atender a problemas que não têm nada a ver com violência, mas com pessoas necessitadas, que têm problemas de saúde mental, por exemplo”, aponta. “Por que seres humanos armados são chamados para resolver um problema que exigiria treinamento, não em violência, mas em como lidar com pessoas que estão passando por crises?”.

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