Racismo na escola: expulso ou acolhido?

Todos os racismos e, o limite a eles, são respostas da sociedade onde se manifestam. Embora cada caso carregue dinâmicas próprias, em comum há a urgência de sermos, sempre, mais hábeis do que eles. O ocorrido com a mãe Samara Felippo cuja filha sofreu uma pesada agressão na escola coloca, uma vez mais, um turbilhão de argumentos em disputa no espaço público. Isto quer dizer que o ano 2024 apresenta novas camadas sobrepostas ao debate acerca das relações raciais. E, família é família. A da estudante racista, pede desculpas. A da mirada por ele, pede a expulsão da agressora.

Pedir desculpas

E, já que famílias são da ordem do privado, lá em casa é assim. O meu filho escutou a vida inteira que pedir desculpas é importante, mas é 0,01% após a besteira feita. Sem explorar muito as infinitas motivações que levem ao pedido, sempre usei a imagem do copo de cristal. Quebrado por alguém, seja quem for ou com qual intenção, pedir desculpas não resolve o problema do copo estar quebrado. Isto quer dizer que os nossos atos têm consequências. De muitos cacos, até eventual sangue para estancar. Assumir os danos é um princípio para o estar no mundo perceber. E, isto é mais valioso que o mais fino dos cristais.

Mas ok, somos humanos, erramos. O pedido de desculpas pode abrir uma conversa. No entanto, com o alerta para não deslocar o foco principal. O que temos aqui é a hostilidade racista dirigida a uma estudante. No detalhe, o caderno com trabalho escolar foi roubado, rasgado e preenchido com frase racista. A responsabilidade sobre a violência é, mais ou menos reconhecida pela família da agressora, por meio de uma carta dirigida aos pais do 9º ano onde tudo aconteceu. Nela, o destaque é a comunidade afetiva. Em resumo, “somos conhecidos”, “estamos cuidando de nossas dores”, “queremos aprender”. O material ressalta ter a filha já pedido desculpas, “de não haver sido só ela, nem de ser o primeiro caso de violência racial na escola”. A heroína teria tomado a iniciativa de confessar para os pais somando o fato de “nunca ter havido denúncias relacionadas à comportamentos dela”. Eles se dizem surpresos (isto pode acontecer com qualquer família) e se posicionam: “não acreditam em ação punitiva, de justiçamento” E como protagonista do desfecho, o final da carta informa ter a filha “decidido deixar a escola”.

O resumo selecionado aqui, quer destacar que as entrelinhas do pedir desculpas vão se tornando um pedido de apagamento do acontecido. O enredo é uma defesa da filha e, o racismo expresso por ela, perde o foco. E, quando entra, vem associado à ideia “do racismo tá lá fora”, “é estrutural” e vida que segue. Então, desculpe, o não há como responsabilizar alguém por racismo é renovado. Basta procurar o inesquecível histórico para a qualificação de condutas serem tipificadas como racista, no Brasil.

Racismo é crime

Hora então, de lembrar a mais recente Lei 14.532/2023. É a que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo com pena mais severa: reclusão de dois a cinco anos, multa, sem fiança e, imprescritível. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional são limites impostos pela legislação. E Lei existe, justamente, por haver abuso. Embora fundamental, seria ela suficiente para mudanças culturais? De natureza igual, se no passado o bater em mulher ninguém botava a colher, vale notar o quanto o posicionamento em relação à ocorrência mudou, seja na legislação, seja no comportamento, amparos, renovados questionamentos. Enfim, é instância pública na luta por ampliação de cidadania. 

E quando o crime de racismo é praticado por menores de idade? Na régua jurídica o termo utilizado é ato infracional. E nesses tempos de rede, há para considerar que uma agressão, embora simbólica, ela produz materialidade e pode matar. A gravidade com a reverberação operada desde pré-adolescentes é equivalente a entrada de uma arma na escola. Racismo não é brincadeirinha e tem uma escala maior que o bullying. A carga histórica cumulativa dirigida para a coletividade de afro-brasileiros carrega uma eficácia de longa duração sendo muito mais que uma circunstância individualizada. Também, há para considerar o desejo por uma maior equidade nos relacionamentos não ser unanimidade. Em nossos dinamismos culturais temos tanto mudanças progressistas quanto as que não querem alterá-las. São perspectivas que invadem o dentro e o fora da casa alcançando qualquer um. Sobretudo, rodeiam uma nova geração. 

A escola

Meu filho diria que o racismo é uma dor crônica e intermitente para todos os envolvidos. A diferença está em quem realmente decide tratá-la. Por exemplo, qual o protocolo para quando o ato racista surge na escola? Talvez quando começar a onda de fechar estabelecimentos, por racismo, todas as escolas comecem a levar a sério o lidar, de fato com a questão. É preciso agilidade para o preventivo e sobra trabalho para a sala de aula, para pauta com professores, com a comunidade externa, metodologias que impeçam a liberalidades de expressão como na gravidade ocorrida. O enfrentamento passa por limites nítidos ou, pela boa conivência com racismos?   

Nos últimos tempos, eu que visito muitas escolas, noto o interesse fácil dos estudantes ao trazerem os episódios de hostilização de atletas, muitas vezes os seus ídolos, por exemplo. E ele basta para pensar o quanto os ambientes educativos poderiam, no passado, transformar o interesse em aprendizado sobre relações raciais. E, por ignorar acabam ignorantes para a velocidade de temáticas envolvendo esta e outras searas como a de gênero, ódio racial, empatia, equidade na representatividade ofertada, intolerâncias, IA e etc. Não são os temas, mas escancaram princípios educacionais em risco. Outra vez, me foi relatado o relacionamento entre duas estudantes, uma branca curiosa com o cabelo da colega negra. A professora negra, com postura de líder, percebeu e interveio de imediato. Perguntou se havia ali autorização para pegar o cabelo. Tamanha sensibilidade educadora pode estar, diametralmente, relacionada à memórias de sua própria infância. Ou, o treino por quem é presente na produção de conhecimento sobre o quesito cabelo em relacionamentos interraciais. Gostar ou se sentir incomodada? Para intervir é necessário perceber um, eventual, contratempo. Sequer entender esta e outras sensíveis situações envolvendo uma particular humanidade é a rotina das histórias únicas. No cotidiano, adolescentes negras altivas podem incomodar por saberem se defender. Hoje há mais suporte e acolhimento na valorização de uma origem continental africana. “Outrora”, sob valores depreciativos seriam tratadas como metidas, por uma visão que as colocam como fora do lugar. Portanto, se a diversidade enriquece os ambientes, uma educação de excelência já conhece a importância dos bastidores escolares. Não apenas a presença diversa, mas a garantia de espaço formativo constante para troca de pontos de vista. Aliás, o estudo do meio no cenário do racismo manifesto poderia focalizar a própria instituição. Em um espaço saudável, democrático, seria fácil irromper a expressão racista atirando para todo lado? Os educadores e educadoras não perceberam a gravidade em gestação? Luzes, por favor na dimensão discente e docente. Recorrências naturalizadas? Não adiante delegar a matéria apenas para pais interessados. A postura institucional é, nesse momento, a governabilidade aliada à causa. Se fosse meu filho a receber uma agressão, qual o limite nítido definido no contrato de confiabilidade, a garantia e a agilidade no cumprimento do protocolo?   

O portão

O fato é que da porta da casa pra dentro eu posso responder ao racismo com certa pessoalidade. Mas, da porta pra fora lidar com as indignações a ele, vindas da sociedade é inevitável. Não se admite mais a camaradagem com os racismos, estejam eles onde estiverem. A expulsão do racismo, se exemplar, ensina e explicita a demarcação naquele contexto. A escola é o portão que decide sobre o que entra e o que sai como princípios para educar uma nova geração. E há, ainda, algo importante a frisar sobre o momento do aprendizado. Há o da prevenção. Já o ato em si precisa responsabilizar a agressora, os pais na exata proporção do sucedido e, a escola. Os ambientes educativos sempre foram apáticos diante de ataques racistas. E, a mudança é muito lenta. A reeducação passa para a nova escola, em novo momento. E o alvo da agressão, o racismo, da mesma forma, ganha novo patamar de referência na escola atual.    

Não há como recompor um copo estilhaçado. Mas, o que fazer, a partir de então? Eu tenho detectado em escolas que levam o selo antirracista, bons avanços nessa direção. Mas há também retrocessos. O pior deles é instituir o apartheid entre estudantes bolsistas. Ou, então, ao recolocar o assunto junto à gurizada priorizar o tom da identidade afro como perdedora social o que termina em mais constrangimentos. Outro ponto, o “racismo estrutural” não pode se tornar um discurso vazio que transfere o problema para uma instância genérica. Eliminar cultivos de racismo na sala de aula não é da instância privada. O direito a não passar por ataques passa pela escuta, pela troca de pontos de vista, estudos e, principalmente tomadas de decisões educativas. São camadas e mais camadas vivas a fornecer o futuro. 


Heloisa Pires Lima

 Drª em antropologia social, escritora para as infâncias. Atualmente é membro do Conselho da Casa Sueli Carneiro. 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Direito à Ancestralidade

Independentemente de como você professa sua fé, pessoas pretas...

“o que você está fazendo nesta rua?

1) Eu estava viajando com um pequeno grupo da...

Emicida e o direito de sermos quem somos

“Eu mudarei o curso da vida/Farei um altar para...

À Glória o que é de Glória

Nos deixa no dia de hoje, 02 de fevereiro...

para lembrar

Black is King, ancestralidade e afro futuro

O rei Leão foi lançado pela primeira vez em...

Por que injúria racial não é somente um crime contra a honra?

No dia 11 de janeiro de 2023, durante a...

A rua é a voz

por  Lelê Teles via Guest Post para o Portal...

O poder do amor próprio

Minha história se inicia no dia 30/01/1993, em uma cidade chamada Guaratinguetá. Bianca nasce no verão , em ritmo de carnaval, em um sábado de...

Candaces, a realeza meroíta cai no samba: o carnaval de 2007 da Acadêmicos do Salgueiro

Desde 1984, o sambódromo da Marquês de Sapucaí é palco do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Lá, foram protagonizados desfiles...

Reflexões de uma mãe preta sobre os dias das mães

Há 02 dias, Hakim, meu primeiro filho, completou 07 anos e por causa deste evento muitos sentimentos chegaram com força em meu coração. Hakim é...
-+=